25 de dezembro de 2016

Agostinho da Silva e a Galiza



A visão agostiniana da Galiza emerge no âmbito da sua reflexão
sobre Portugal, sobre o seu sentido histórico. Desenvolveu 
Agostinho da Silva essa reflexão em diversas obras, desde 
logo, na sua Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa
obra publicada no Brasil, em 1957. Nessa obra, logo no 
primeiro capítulo, Portugal e Galiza aparecem a par,
 “como dois noivos que a vida separou”. Separação que 
Agostinho lamenta, por Portugal sobretudo, dado que, 
como nos diz, se ela não tivesse ocorrido, “talvez o ouro da
 Índia e Brasil tivesse dado maior proveito e se não tivesse, em plena época de afluxo de riquezas, 
de fazer aportar ao Tejo frotas de cereal e pão”.

Separado da Galiza, Portugal perdeu pois, à luz desta visão, as suas raízes mais profundas, 
o seu Norte. Eis, dir-se-ia, o “pecado original” da formação de Portugal e das futuras 
Descobertas. Nesta visão da História, não é, contudo, essa separação, essa cisão, um 
horizonte inultrapassável. Eis o que o próprio Agostinho da Silva, de resto, nos havia já 
antecipado no seguimento da passagem da sua Reflexão à 
Margem da Literatura Portuguesa que há pouco transcrevemos, essa 
em que lamentava a nossa separação, a nossa cisão, com a Galiza – como aí escreveu:
“Mas tempo vem atrás de tempo; se há ‘talvez’ para o passado da História, há ‘talvez’
igualmente para o futuro da História; pode ser que um dia a reintegração da Península 
em si mesma, na sua liberdade essencial, se faça através da reunião de Portugal e da Galiza. 
Dos dois noivos que a vida separou.”.

Talvez que, contudo, sob uma perspectiva outra, essa separação, essa cisão, tenha sido 
historicamente necessária. Eis o que, pelo menos, o que o autor de 
Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa sugere numa outra sua obra 
– Um Fernando Pessoa, publicada dois anos depois, em 1959 –, quando aí 
desenvolve uma visão triádica de Portugal, à luz da qual “o primeiro Portugal foi 
– nas suas palavras – o Portugal da velha unidade galaico-portuguesa, o Portugal
lírico e guerreiro das antigas de amigo e das velhas trovas do cancioneiro popular; 
nele estiveram – como acrescenta ainda – as raízes mais profundas da nacionalidade 
e nele sempre residiram as inabaláveis bases daquele religioso amor da liberdade 
que caracteriza Portugal como grei política”.

Para que Portugal pudesse barcar, talvez que, contudo, tivesse que se cindir da sua arca... 
Eis, com efeito, o que, no seguimento desta passagem, Agostinho da Silva implícita 
senão mesmo expressamente defende ao afirmar que esse “Portugal da velha 
unidade galaico-portuguesa” era “demasiado rígido para as aventuras da miscigenação, 
da tessitura económica e do nomadismo que não reconheceria limites”. A ser assim, 
essa cisão foi, pois, genesíaca – dado que dela resultou toda a demanda das 
Descobertas! Poderia, como expressamente salvaguarda o próprio Agostinho da Silva, 
no segundo capítulo da sua Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa
não ter sido assim – nas suas palavras: “O Português podia ter resistido ao 
apelo do longe, Portugal podia ter-se recusado à acção.”. Contudo, como se 
questiona ainda o próprio Agostinho da Silva: “…se Portugal não tivesse 
embarcado, quem teria embarcado?”.

Renato Epifânio

9 de dezembro de 2016

  "Aspecto Interior do Sacrifício"  (excerto)                               por Agostinho da Silva 


[...] “O desprender-se da segurança e da comodidade, o mergulhar na incerteza e na dura restrição só para continuar fiel às bases em que assentou o pensamento e se quis fundamentar toda a vida é já a certeza, para aquele que verdadeiramente serve o espírito, de que segue o bom caminho, de que a sua posição adversa à grande massa é ainda aristocrática, isolada, como é preciso que seja. O cumprimento do dever, quando se não chama dever a uma imposição feita de fora, mas a uma aspiração sempre mais larga à posse de todo o mundo racional, jamais poderá ser olhado como um sacrifício que exige recompensa; antes me parece que uma tal oportunidade de ter experimentado as suas forças e vencido mais um grau na imensa e bela subida para o Ser apenas deveria provocar, nas relações com os outros, uma gratidão sincera e sólida por todo o conjunto de circunstâncias que permitiu o provar e ascender. [...]
   Há, no entanto, um outro aspecto que sobreleva em significação universal esta fidelidade de indivíduo a si próprio; o domínio do impulso dos sentimentos pelo calmo giro da razão é um esforço que leva o mundo para Deus, como as pancadas dos remos fazem deslizar o barco sobre as águas; no bom remador nenhum movimento é inútil para que o porto se alcance; de igual modo, no que bem pensa, nenhum acto da vida se perde para a salvação da Humanidade; e mais do que todos, dão marcha vigorosa ao barco em que vogamos, os que ousaram  as mais largas remadas, os que não temeram estoirar os músculos ao serviço do bem comum. No que mais vê objecto que sujeito anda espalhado o fim último dos homens: inteligência que em si compreende amor, beleza e justiça; consagrar-lhe a vida inteira, num momento ou em anos, é repartir-se por toda a Humanidade, arder nas várias chamas que de todos os peitos se elevam para o céu, congregá-las no fogo do trabalho que transformará o universo. A esta grande missão só uma linguagem desvairada poderá chamar sacrifício, só os cegos de espírito poderão dar por companheiras a resignação e a tristeza. Os que vêem mais alto e mais claro ardentemente desejam que sobre eles recaia a escolha do Senhor; porque sabem como as almas se dilatam, como as invade, as ilumina a alegria contínua e doce, quando sentem palpitar dentro de si, correr, expandir-se o grande mar de sonhos, de visões, de caridade e aspiração de justiça, que vai rolando poderoso e magnífico no mundo.”


Agostinho da Silva, Considerações, in Textos e Ensaios Filosóficos, vol I. Lisboa, 1999, Âncora Editora, pp.97,98 (Considerações - texto publicado pelo autor, 1ªedição, Famalicão, 1944)

Enviado por Maurícia Telles

8 de dezembro de 2016

ADVENTO É O TEMPO DA CAMINHADA PARA A GRUTA DO CORAÇÃO


O Presépio é o Protótipo da Ipseidade (Eu) e de toda a Vida

Por António Justo
Advento quer dizer chegada, é o tempo de espera 
e de esperança. Liturgicamente, o tempo de espera é 
o tempo grávido que vai até ao dar à luz: o natal 
acontece hoje e sempre na gruta do coração, 
onde se dá a revelação d’Aquele que é, que era e 
que vem (Ap 1, 4-8). Ele não foi nascer no templo 
nem no parlamento, nasceu e nasce numa gruta da 
terra ainda virgem e aberta a tudo e todos, onde se 
pode encontrar pobre e rico, crente e céptico, toda a 
pessoa de boa vontade, aberta e disposta a deixar-se 
surpreender para dar oportunidade à criatividade.
A caminhada de Maria e José para Belém é o 
símbolo da caminhada histórica e mística da vida de 
cada um; é a caminhada para nós mesmos, a ida 
ao encontro do nosso centro e ao mesmo tempo o 
início e a meta de nós mesmos e do universo. 
José e Maria sabiam para onde ir, tinham um objectivo: 
Belém e dar à luz Jesus nas suas vidas e para o mundo.
O Advento é uma caminhada, um percurso com altos e 
baixos, com ventos e acalmias. Séneca dizia: 
“Nenhum vento sopra a favor de quem não sabe 
para onde ir”. Todos nós andamos na barca da 
fragilidade e da insegurança mas, das velas da 
nossa vontade, depende o aproveitamento do 
vento para a levar ao trajecto do que fica e não passa.
Na gruta de Belém, longe do bulício da cidade, o 
divino infante nasceu na companhia dos animais e 
da família, onde razão e coração se encontram 
unidos, onde não há oligarquia nem tirania.
Hoje o presépio de Belém simboliza também a gruta 
do nosso coração. Se descermos os degraus da 
caverna do nosso interior, chegaremos ao íntimo do 
coração onde borbulha a água viva, tudo o que é divino 
e ultrapassa o tempo; nessa gruta, no limiar do nosso 
espírito, brota a vida e brilha a luz, o Deus menino. Vale 
a pena tentar; a vida é uma tentação contínua, toda ela 
tricotada de bem e mal numa espiral ascendente! O 
que fica e mais nos caracteriza é o caminho feito e o 
aroma do amor que o cobre.
Para se nascer e acordar para a vida não é suficiente 
ficar-se pela superfície seguindo caminhos já feitos; 
é preciso arrotear o próprio para vivermos e não sermos 
vividos. Para isso é preciso entrar-se numa gruta, lá 
onde se encontra o tesouro enterrado. Esse tesouro é 
o nosso eu no nós, a nossa ipseidade que participa da 
natureza divina, um mistério que envolve matéria e 
espírito, que une a “realidade” ao sonho, o todo e o 
particular numa relação de complementaridade. Aí 
poderemos ressurgir na criança que ao ser acariciada 
provoca em nós uma nova consciência e uma mudança 
na vida. O presépio é o protótipo da vida e da Ipseidade 
(eu integral), é a fonte do eu a brotar do nós.
Natal é a matriz (padrão) da vida individual, comunitária e 
cósmica e Advento é o tempo histórico e místico da sua 
realização. Jesus Cristo é o protótipo da realização 
pessoal, comunitária e cósmica equacionada na fórmula trinitária.

António da Cunha Duarte Justo
Teólogo
Pegadas do Espírito no Tempo, http://antonio-justo.eu/?p=3975