21 de junho de 2015

Uma Biografia de Agostinho da Silva



1. Comecemos por falar sobre o autor desta obra colossal (O Estranhíssimo Colosso. 
Uma Biografia de Agostinho da Silva, Quetzal, 2015, 735 pp.): António Cândido Franco. 
Não tanto para salientar a sua já vasta obra – recordamos aqui alguns títulos: 
Memória de Inês de Castro (1990), Eleonor na Serra de Pascoaes (1992), 
Vida de Sebastião, Rei de Portugal(1993), A literatura de Teixeira de Pascoaes (2000), 
Os Descobrimentos Portugueses e a Demanda do Preste João (2001), 
A Rainha Morta e o Rei Saudade (2003), Viagem a Pascoaes (2006),
 A saga do Rei Menino (2007), A herança de D. Carlos (2008), 
Vida Ignorada de Leonor Teles (2009), Os pecados da Rainha Santa Isabel (2010) 
Notas para a Compreensão do Surrealismo em Portugal (2013) –, 
ou sobre a sua carreira académica na Universidade de Évora – onde é professor 
há já bastantes anos –, mas sobre o seu carácter, mais precisamente, sobre 
um traço do seu carácter que valorizamos em particular.
Ao contrário do que é hábito – sobretudo, arriscamos dizê-lo, em Portugal –, 
António Cândido Franco lida bem com o diferente, ou seja, consegue dialogar 
com quem tem posições muito diversas das suas, conseguindo até, nalguns casos, 
admirar essas pessoas, sem que isso implique qualquer abdicação da sua posição 
de partida. Dou um exemplo recente: a recensão que António Cândido Franco 
publicou no nº 15 da Revista NOVA ÁGUIA (1º semestre de 2015) da obra 
O Puto – Autópsia dos Ventos da Liberdade, de Ricardo Saavedra. Esta obra, 
para quem não o tenha presente, é ela própria uma biografia, no caso de alguém 
que, nas palavras de António Cândido Franco, “viveu o lado errado e em geral 
esquecido da Revolução dos Cravos” – acrescentando: “Este homem não viveu, 
como tantos de nós, o 25 de Abril mas apenas a descolonização. Em vez de alegria, 
sentiu medo; em lugar de euforia, a depressão; em vez duma libertação, 
o pânico de perder casa e vida. É de pasmar que o herói deste livro, já 
encarcerado, no feriado do 25 de Abril traje de luto pela pátria morta? 
Não cremos. Está na lógica do livro e da personagem.”.
Não conhecemos muitas pessoas que, comungando o mesmo ideário de 
António Cândido Franco, tenham igual grandeza de carácter para escreverem 
o que acabei de citar – de imediato, lembro-me de Raul Proença, que salienta 
a “belíssima alma” de Teixeira de Pascoaes no mesmo gesto em que assume a 
dissidência em relação à “Renascença Portuguesa”. A regra entre nós é a contrária: 
as divergências acabam (quase) sempre em desqualificações: se alguém não 
concorda connosco é porque, em última instância, padece de alguma falha 
de carácter ou de inteligência. É bem mais complicado, com efeito, admitir, 
para mais de forma expressa, que os nossos adversários – ou mesmo os 
nossos inimigos – sejam pessoas no mínimo tão bem-intencionadas quanto nós, 
por mais que, objectivamente, consideremos que estejam do “lado errado”. 
Daí, de resto, o erro absoluto daqueles que reduzem os diferendos ideológicos 
a divergências éticas – da extrema-esquerda à extrema-direita, passando decerto 
por todas as variantes do centro, há pessoas bem-intencionadas. A diferença não está pois aí.

2. Mas regressemos a este colossal livro, não tanto pelo seu tamanho 
(mais de setecentas páginas), como, sobretudo, pela sua ousadia: fazer uma 
Biografia de Agostinho da Silva. Sabemos bem que esta era uma tarefa tão 
desejada por muitos quanto ciclópica, dados os muitos “buracos negros” 
que existiam na vida de Agostinho da Silva. António Cândido Franco, desde 
já o dizemos, não traz à luz todos esses “buracos negros”. Mas conseguiu 
realizar uma obra que merece, na íntegra, esse subtítulo: 
“Uma Biografia de Agostinho da Silva”. E sublinhamos aqui o artigo, 
que parece ter escapado a alguns comentadores mais apressados: 
trata-se aqui de “Uma Biografia de Agostinho da Silva”, não de 
“A Biografia de Agostinho da Silva”.
Isso é desde logo relevante porque toda esta Biografia se desenvolve 
a partir de uma perspectiva: a de António Cândido Franco, necessariamente. 
Assim, tal como o próprio Agostinho da Silva nos deu, numa das suas 
mais conhecidas obras, “Um Fernando Pessoa” e não “O Fernando Pessoa”, 
assim também António Cândido Franco” nos dá “Um Agostinho da Silva” e não 
“O Agostinho da Silva”. Tanto mais porque, ao longo da obra, 
António Cândido Franco parece-nos enaltecer mais as dimensões 
da vida e obra de Agostinho da Silva em que mais se reconhece – 
e ao dizermos isto não estamos a fazer, como alguns poderão pensar, 
um juízo negativo.
Temos aqui bem presente a lição daquele cuja obra, a par de Agostinho da Silva, 
mais estudámos no âmbito do pensamento português contemporâneo
 – falamos de José Marinho. Escreveu ele que “quando expomos um 
pensador devemos dar toda a força ao seu pensamento” 
– defendendo ainda, citando Schopenhauer, “tal atitude é, em relação a eles, 
a mais adequada e é, para o nosso próprio pensamento, a mais proveitosa”. 
Ou seja: António Cândido Franco, ao ter – como escrevemos – enaltecido 
mais as dimensões da vida e obra de Agostinho da Silva em que mais se 
reconhece, procurou dar (e bem) “toda a força ao pensamento” agostiniano. 
Nós, decerto, faríamos diferente – mas com o mesmo objectivo. Também nós, 
com efeito, tendemos a enaltecer mais as dimensões da vida e obra de 
Agostinho da Silva em que mais nos reconhecemos.
O retrato que António Cândido Franco nos dá de Agostinho da Silva é pois 
um seu retrato, mas é, inequivocamente, um retrato verdadeiro. Verdadeiro 
e generoso: mesmo que algumas passagens possam não agradar a alguns 
gostos mais conservadores (e isso chegou a acontecer connosco – 
não temos qualquer complexo em assumi-lo), António Cândido Franco 
procurou sempre aquele que seria, na sua perspectiva, o melhor ângulo, 
o ângulo mais favorável ao retratado, mesmo quando não escamoteia as 
dimensões mais chãs de qualquer existência humana. Em todas essas dimensões, 
foi, com efeito, Agostinho da Silva um homem maximamente viril, 
maximamente enérgico. Um colosso, numa palavra. Só acrescentaríamos 
“estranhíssimo” porque, nos nossos tempos, homens assim são cada vez 
mais raros. Verdadeiramente, Agostinho da Silva não foi um homem do nosso tempo.
 
3. Esse é, de resto, na nossa perspectiva, o maior paradoxo da 
existência de Agostinho da Silva – como é que alguém que não foi
verdadeiramente do nosso tempo conseguiu prever, melhor do que ninguém, 
o Portugal pós-imperial. Antecipando a previsível catástrofe, tentou, ainda nos 
anos sessenta, avançar para uma verdadeira Comunidade Lusófona. 
O Estado Novo não lhe deu ouvidos. A Revolução em curso também não: 
“…a ideia geral talvez fosse, e eu próprio a defendia e procurei no princípio 
da guerra em Angola, junto de autoridades portuguesas, por exemplo de um 
embaixador no Rio, pôr-lhes essa ideia na cabeça... fazer das colónias e de 
Portugal uma comunidade de língua portuguesa. Ideia que expus a 
Franco Nogueira quando vim a Portugal, em 1962, convidado pelo 
Governo português para discutir o estatuto do 
Centro de Estudos Portugueses em Brasília. O ministro Franco Nogueira, 
ministro dos Estrangeiros nessa altura, recebeu-me e pudemos 
conversar com toda a franque­za, perguntando-me ele se eu achava 
que a ideia de uma comunidade luso-brasileira seria bem recebida 
no Brasil, respondi-lhe que não. Exactamente por causa da atitu­de 
que Portugal estava a tomar com as colónias, com Angola naquela ocasião, 
o Brasil de nenhuma maneira ia aceitar isso, pois recordava-se muito bem 
que tinha sido colónia. A meu ver, Portugal tratou o Brasil muito bem 
quando foi colónia e se não tivessem sido os portugueses, o Brasil não 
se teria constituído. Mas o Brasil muitas vezes achava que os portugueses 
tinham tido defeitos na colonização — a meus olhos esses defeitos não 
existiram, embora houvesse muita coisa individual de tipo geralmente
 conotado com a colonização rapinante dos países. Mas não me parecia 
que naquela altura aceitassem uma coisa dessas. Mas havia algo que 
achava que aceitavam e que tomava a liberdade de expor a 
Franco Nogueira, que de resto tinha tido relações com um grande 
amigo meu, o poeta Casais Monteiro, e, portan­to, eu podia falar 
com uma certa liberdade, por isso disse-lhe que o que me parecia 
que se devia fazer era uma comunidade luso-afro-brasileira com o 
ponto africano muito bem marcado. Quer dizer, se pudesse, 
eu poria o ponto central da comunida­de, embora cada um dos 
países tivesse a sua liberdade, a sua autonomia, em África, talvez 
Luanda ou no interior de Angola, no planalto, de maneira que ali 
se congre­gassem Portugal e o Brasil para o desenvolvimento de África 
e para que se firmasse no Atlântico um triângulo de fala portuguesa
 — Portugal, Angola, Brasil — que pudesse levar depois a outras relações 
ou ao oferecimento de relações de outra espé­cie aos outros países. Então 
Franco Nogueira disse-me que isso era completamente impossível, 
que Portugal não se podia dividir e que não havia nada a fazer nesse ponto. 
De maneira que eu continuo a pensar que, aquando da revolução em 1974, 
se poderia talvez ter tentado isso.” 
(in Vida Conversável, Lisboa, Assírio & Alvim, 1994, pp. 51-52).
Resta perguntar se, esgotada a ilusão europeísta, que, como sabemos, 
Agostinho da Silva igualmente antecipou, chegou a hora de tentar de novo. 
Nós consideramos que sim.
Renato Epifânio
Presidente do MIL: Movimento Internacional Lusófono

António Quadros como precursor dos estudos do sebastianismo na literatura brasileira



A excelência da obra imensa de António Quadros — com requinte de análise muito própria de intelectuais de rara inteligência — clarifica que a cultura portuguesa é do tipo universal cuja coesão sustenta-se pela aprendizagem de uma língua comum que permite a coexistência entre culturas de povos diversos e diferentes. Aprofunda e expande os conhecimentos sobre a matriz lusa e seus efeitos ecumênicos refletidos na geografia criada pela língua portuguesa e enfatiza que o contínuo mergulho na História de Portugal e dos seus Mitos promove o fortalecimento da nossa compreensão de Nação, também, missionária, pois alargada no contato com as fontes primordiais em que mito e história se tocam, sonho e realidade tomam a forma de símbolos do milenarismo, do messianismo e do profetismo.  
Assim sendo, detenho-me na obra Poesia e Filosofia do mito sebastianista[1] na qual encontro a voz de um António Quadros que salienta os princípios de uma cultura portuguesa original e autônoma, vincando as características específicas e inconfundíveis do sebastianismo ao projeto vital, quer dizer, ao teleologismo que nos irmana na mesma consciência da missão que ao homem cabe aceder e realizar neste mundo ainda essencialmente tomado pelo medo e pelo dramático fado da insignificação da existência. Temos, pois, de articular o projeto de um Novo Tempo que já foi pensado e em muito realizado por Quadros de modo que possamos, de fato, entrelaçar cultura e educação. Ora, estamos no difícil momento em que há um trabalho prévio a realizar antes que se possa falar em reforma: o de requerer o aparecimento de valores de uma cultura radicada na beleza, na fraternidade, na tolerância e no sentido de justiça, peculiaridades que subjazem ao mito sebastianista. 
Isto posto, destaco o Livro II, em específico, a Parte II[2], na qual o autor elenca um grupo de pesquisadores que se interessaram pelo tema sebastianista, agrupando, assim, um acervo bibliográfico de primeira linha que orienta estudos investigativos sobre o mito sebástico e as suas variações diacrônicas que, no entanto, não o deixaram “[...] perder algo de essencial que o distingue e o caracteriza.”[3]. Como a investigação é, na verdade, fundamental e, sem ela, é impossível radicar com profundeza qualquer ação formativa, considero que seja na recolha atenta de uma bibliografia que explana a estrutura, a psicologia, a filosofia, as controvérsias e os rituais de desencantamento do mito sebastianista e na análise crítica dos livros examinados por António Quadros — que observa como cada autor entendeu ou descreveu a fenomenologia deste mito — que o torna um dos precursores dos estudos sebastianistas na literatura brasileira. Foi esta maneira de explanação metódica, com riqueza de informação, que me instigou à leitura de textos poéticos que indicam ora o sentido psicológico, sociológico e ético ora um viés de subordinação ideológica ou política do sebastianismo.
Quadros bem apontou a ressignificação da portugalidade no mito sebástico ao ritmo do movimento e da tessitura de nossa identidade nacional configurada no ser-tão nordestino vocacionado para a “Ilha encantada, terra da promissão” — de onde se espraia a profundidade da paisagem humana, social e física do Brasil menino e de onde se alumia o Dom Sebastião da Liberdade como a unidade místico-espiritual de um povo pastoreio do Reino do Espírito Santo. Também, por meio de António Quadros redescobre-se e é possível fixar que a nossa literatura é exemplar, genuinamente entretecida do mito sebastianista que é reinventado, toma forma, se materializa poeticamente por intermédio dos mestres da palavra como: José Lins do Rego, Joaquim Cardozo, Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Guilherme de Almeida, Ribeiro Couto, João Cabral de Melo Neto, Ariano Suassuna, José Santiago Naud e Euclides da Cunha que inspirou Vargas Llosa a escrever a saga de Canudos em La Guerra del Fin del Mundo.
A propósito, Quadros defendeu a ideia de que foi a “aldeia sagrada” de Canudos um movimento resultante do inconsciente arcaico e popular pertencente à “[...] substância ideal, onírica, utópica e filosófico-religiosa que está na origem do mito do Encoberto, [...].”[4]. Não obstante a irreflexão do fanatismo, Canudos fez-se fenômeno singular e simbólico, uma espécie de ecumenismo fervoroso, ativo, que se indispunha com o tempo da trivialidade e do desespero metafísico.
Além do mais, existe uma irradiação constante, persistente e vasta da cultura portuguesa, em especial, do mito sebástico em certos textos de Cassiano Ricardo, Dora Ferreira da Silva, Sousândrade, Hilda Hilst e na voz de cancioneiros populares como Alceu Valença, Gilberto Gil, Milton Nascimento e no nordeste desvelado de um Patativa do Assaré ou de um Augusto Pessoa ou no cordel de João Lopes Freire. A propósito, este cordelista, ao reavivar a história de Carlos Magno e os doze pares de França, reconta que Carlos Magno foi coroado em Roma com o titulo de imperador do sacro Império romano e que foi o soberano que mais próximo ficou da realização do Quinto Império. Em várias regiões do Brasil esse sonho medieval ainda é manifestado nas Cavalhadas e Marujadas.
Há em nosso cenário literário um Encoberto que sempre regressa, mesmo que tenha passado o tempo histórico de vida possível do próprio Rei D. Sebastião. Todavia, já não se trata da volta desse monarca, mas, da ritualização do mito e, por conseguinte, do que ele significa e realiza culturalmente: uma ideia fundamental de força revolucionária como a que se apresenta na letra poética “Admirável gado novo”[5], de Zé Ramalho, na qual há referências veladas a D. Sebastião na medida em que esse mito incita, na imanência histórica (o hoc tempore está no in illo tempore), a realização coletiva de uma República democrática popular acercada por valores de liberdade de ser, de saber e de viver que se projetariam para todo o mundo ou mesmo no tocante à derrubada de relações humilhantes, sobretudo, no que concerne às ditaduras, aos governos totalitários.
É sob a perspetiva de recusa aos mandonismos locais que se desenhou a figura de D. Sebastião, a bem dizer, o destino da vida, de modo especial à vida humana e, simultaneamente, o transcendente e o imanente, o futuro do passado mítico e sua presentificação em uma poesia de Ferreira Gullar[6] que conta a lenda da Praia dos Lençóis no Maranhão.

Diz a lenda que na praia
dos Lençóis no Maranhão
há um touro negro encantado
e que esse touro é Dom Sebastião.
Dizem que, se a noite é feia,
qualquer um pode escutar
o touro a correr na areia
até se perder no mar
onde vive num palácio
feito de seda e de ouro.
Mas todo encanto se acaba
se alguém enfrentar o touro.
E se alguém matar o touro
o ouro se torna pão:
Nunca mais haverá fome
nas terras do Maranhão.
E voltará a ser rei
o rei Dom Sebastião.
Isso é que diz a lenda.
Mas eu digo mais:
Se o povo matar o touro,
a encantação se desfaz.
Mas não é o rei, é o povo
que afinal se desencanta.
Não é o rei, é o povo
que se liberta e levanta
como seu próprio senhor:
Que o povo é o rei encantado
no touro que ele inventou.

Atento que, de um lado, há o tempo fáctico e histórico, do outro, o tempo mítico das origens, tempo trans-histórico e metafísico que, no seu horizonte ilimitado e inexaurível, abarca e transcende o horizonte limitado e perecível dos acontecimentos. Ou seja, ser o que D. Sebastião simboliza em termos de esperança, para que, em tempo certo, ele possa despertar na materialidade íntima e mundana simultaneamente. Não por acaso ele retorna ou refunda-se em todos os sujeitos; o importante é ter o povo chegado, no imaginário poético de Ferreira Gullar, à ideia de que é preciso refundar em cada indivíduo o Espírito a fim de que a reforma se anuncie: novo projeto de vida político-social e econômico.
Há, também, uma vigência do sebastianismo em Caetano Veloso que ressaltou, na conferência proferida no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1993, que o livro Mensagem, de Fernando Pessoa, a ele revelou o tema do mito sebástico. Decerto, ao compreender o significado desse mito português, pôde confessar, no livro Verdade Tropical[7], que sua obra poético musical tem marcas da herança sebastianista. Nesta informação, pode estar, por exemplo, a composição “Bahia, minha preta”[8] que abordo como um texto para ser lido como um poema que mostra a cristalização do mito.

Bahia minha preta
Como será
Se tua seta acerta o caminho e chega lá?
E a curva linha reta
Se ultrapassar
Esse negro azul que te mura,
O mar, o mar?
Cozinha esse cântico
Comprar o equipamento
E saber usar
Vender o talento e saber cobrar, lucrar
Insiste no que é lindo
E o mundo verá
Tu voltares rindo ao lugar que é teu globo azul
Rainha do atlântico sul
         E ô Bahia, fonte mítica encantada
E ô expande teu axé, não esconde nada
E ô teu canto de alegria ecoa longe, tempo e espaço
E ô rainha do atlântico
Te chamo de senhora
Opô Afonjá
Eros, dona Lina, Agostinho e Edgar
Te chamo menininha do cantoise
Candolina, Marta, Didi, Dodô e Osmar
Na linha romântico
Teu novo mundo
O mundo conhecerá
E o que está escondido no fundo emergirá
A voz mediterrânica e florestal
Lança muito além a civilização ora em tom boreal
Rainha do atlântico austral
E ô... Bahia, minha preta,
Como será?

De modo breve, menciono que neste poema, além da presença de nomes próprios reais, concretos e históricos referentes à Bahia dos anos de 1950 que revelam os significados ideológicos de uma época próspera, há evidências de que Bahia se torna uma entidade geradora de sentidos ou a fonte soberana, congregando e sintetizando, em nível textual, uma linguagem que pretende presentificar, presencializando, a figuração imagética do sebastianismo em versos expressivos.
“Bahia, minha preta” é uma poesia indicativa de certo sebastianismo a haver: o resgate de um passado mítico, o revigoramento espiritual, a revaloriza de relações político-sociais, a evidência da ancestralidade africana e a constituição de uma comunidade que se assuma em sua relativa diferença que funde a singular baianidade do Brasil, genuína em sua mistura de raças — miscigenação e ecumenismo. Neste sentido, a cidade da Bahia pode representar a concretização — a realização possível e real — da mítica Ilha Brasil cuja remissão é realizada de maneira explícita: “Rainha do atlântico sul”, “Rainha do atlântico austral”. A Ilha Brasil foi criadora de expetativas dos projetos de descobrimentos e sustenta, em simultâneo, a revivescência do mito sebastianista (no que tange aos valores culturais encobertos em terras brasileiras) e a edificação do Reino do Espírito Santo (que manteria as relações de paz sem as quais se não pode pensar em civilização duradoura).
Da análise dos poemas citados, diz-se que os sujeitos líricos — ou da lírica (lira) cuja origem guarda fortes traços com a música — não aguardam impassíveis D. Sebastião, porque este retorna primeiro na subjetividade dos poetas para expressar o futuro, só depois, na exteriorização da subjetividade de Zé Ramalho, Ferreira Gullar e Caetano Veloso, há o despertar, no ambiente coletivo, do passado mítico que pode motivar a autodeterminação das pessoas e de um povo. Daí a dizer que D. Sebastião é figura de plenitude ontológica que representa contrapontos nos quais as antinomias são superadas.
O Reino do Espírito Santo torna-se, também, um fenômeno literário, como é o caso do poema “Festa dos Tabuleiros em Tomar”, inserido no livro Poemas de Viagens, constante da obra Poesia completa[9] cuja autora é Cecília Meireles. Eis o poema:

As canéforas de Tomar
levam cestos como coroas,
como jardins, castelos, torres,
como nuvens armadas no ar.

Estas gregas do Ribatejo,
nesta procissão, devagar,
não são apenas de Tomar:
são as canéforas dos tempos...

Para onde vão, com o mesmo andar
de milenares portadoras,
levando pão, levando flores,
as canéforas de Tomar?

Para que sol, para que terra,
para que ritos, a que altar,
as canéforas de Tomar
os primores do mundo levam?


O pombo cristão vem pousar
no alto dos cestos: pães e rosas
ides dar aos presos e aos pobres,
ó canéforas de Tomar?

Este poema é uma mostra da cristalização e persistência da tradição místico-religiosa do povo português, sendo uma metonímia da Festa dos Tabuleiros, na cidade de Tomar, o que torna possível uma relação simbólica de existência externa ao texto. Quanto à poesia de “Festa dos Tabuleiros em Tomar”, entendo que seja a metáfora de um novo tempo de bonança, equivalente ao banquete geral, todo ele de comidas gratuitas e do qual participam todos os que o queiram fazer a distribuição de iguarias e a devoção ao saber amar, servir e rezar.
O mito do Reino do Espírito Santo, equivalente ao mito da Ilha Brasil, é “o Princípio reinante anunciado, de cuja matéria lendária serão feitos os mitos portugueses do Quinto Império e do Encoberto.”[10]. Diria, inclusive, que é precisamente uma esperança que irmana os homens para além do mito e a sua assimilação por poetas, cancioneiros e cordelistas mostra a perspicaz observação sobre o modo de ser português declarado, metonimicamente, em poesia, em prosa, em canção, pois, adotando aquilo que o Encoberto representa enquanto futura-Idade, faz ressignificar a parusia com teor de fraternidade ecumênica, humanista, concebida com base em questões fundamentais — o da liberdade de expressão, econômica e político-social.
Então, o valor do sebastianismo não adentrou apenas a nossa literatura, mas dinamiza o cenário cultural brasileiro nas Cavalhadas, nas lendas de D. Sebastião nas figuras de António Conselheiro, Padre Cícero, Tiradentes e Zumbi dos Palmares, no Cangaço, nos ritos da Umbanda e do Candomblé, das Igrejas e das Irmandades, dos Maracatus e das Congadas e até mesmo nos desfiles das Escolas de Samba e nos movimentos comunitários. Isto ocorre pelo fato do Brasil ser um país de paradoxos, de sincretismos.
Estas interpretações só foram possíveis porque tentei, na medida do possível, ressaltar, a partir de António Quadros, o adensamento da cultura portuguesa entre nós e, por extensão, a relevante vocação atlântica de um povo e o sebastianismo como sendo a “[...] alegada chave para a resolução de todos os problemas imediatos do Império português.”[11]. É lícito mencionar que a viabilidade do mito sebastianista depende de sermos sujeitos capazes de, pela cotidiana tarefa, determinar a revolução espiritual que nos dignifique a existência. Portanto, vamos a isso. Viva o Rei. “Mais Rei que nunca! Rei Santo... Rei... O Rei de Sempre!”[12]. Por fim, invento serem meus os versos do poeta Augusto de Campos, autor do livro Verso, Reverso, Contra Verso para fazer uma alusão desde logo a intemporalidade mítica a que acedeu D. Sebastião:

Eu defenderei até a morte o
novo por causa do antigo e até a
vida o antigo por causa do novo.
O antigo que foi novo é
tão novo como o mais novo.



por Lúcia Helena Alves de Sá






[1] António QUADOS, Poesia e filosofia do Mito Sebastianista, (2ª ed.), Lisboa, Guimarães Editores, 2001, pp. 411.
[2] António QUADROS, “O sebastianismo brasileiro”, in António QUADOS, Poesia e filosofia do Mito Sebastianista, (2ª ed.), Lisboa, Guimarães Editores, 2001, pp. 315-346.
[3] António QUADROS, “O sebastianismo brasileiro”, in António QUADOS, Poesia e filosofia do Mito Sebastianista, (2ª ed.), Lisboa, Guimarães Editores, 2001, p. 191.
[4] António QUADROS, “O sebastianismo brasileiro”, in António QUADOS, Poesia e filosofia do Mito Sebastianista, (2ª ed.), Lisboa, Guimarães Editores, 2001, p. 221.
[5] http://letras.mus.br/ze-ramalho/49361/ (03 de setembro de 2013).
[6] Ferreira GULLAR, O rei que mora no mar, São Paulo, Global, 2001, 16 p.
[7] Caetano VELOSO, Verdade tropical, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pp. 93, 300, 338.
[8] CD o sorriso do gato de Alice (sic), Gal Costa, BMG Ariola, Ano 1994.
[9] Cecília MEIRELES, “Festas dos Tabuleiros em Tomar”, in Obras Completa, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1993, pp. 1307-1308.

[10] António QUADROS. Portugal - Razão e Mistério: O projecto áureo ou o Império do Espírito Santo, Lisboa, Guimarães, 1999, p. 91.
[11], Manuel J. GANDRA, Joaquim de Fiore, Joaquimismo e Esperança Sebástica, Lisboa, Fundação Lusíada, 1999, p. 125.
[12] Joaquim DOMINGUES, De Ourique ao Quinto Império, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda (Temas Portugueses), 2002, p. 311.

16 de junho de 2015

Assim disse Agostinho da Silva: “O homem não se fez para trabalhar, mas para criar.”

por Rui Lopo[1]

Agostinho da Silva (1906-1994) nasce no Porto, cidade onde frequenta o liceu e a Faculdade de Letras, estudando Filologia Clássica e dedicando-se à tradução de clássicos gregos e latinos. Adere ao movimento portuense das Universidades Populares. No final da década de vinte, é bolseiro em Espanha onde estuda mística espanhola (e se reúne com os exilados políticos portugueses) e em França onde estuda Montaigne.
De regresso a Portugal inicia a sua dedicação à causa da renovação dos métodos pedagógics em Portugal, introduzindo as correntes de vanguarda da Escola Nova e levando à prática um ambicioso e intenso plano de divulgação científica e cultural entre os mais novos e os mais carenciados, afrontando um regime elitista e autoritário. Em 1935, perante a obrigação de jurar a Constituição imposta aos professores e demais funcionários públicos pela Ditadura, como se recusa, é proibido de ensinar, vivendo então de aulas particulares e da venda dos seus escritos (traduções de clássicos, biografias de homens exemplares, Cadernos Iniciação e À Volta do Mundo, este dirigido aos mais novos), entre os quais, “O Cristianismo” (1942) e a “Doutrina Cristã” (1943) que contribuirão para precipitar a sua perseguição política e prisão. Este período foi ainda marcado pelo cultivo e ensino do Esperanto e pela abundante participação em jornais, revistas e círculos culturais em todo o país.
Em 1944, reúne em livro, em edições de autor, grande parte da sua produção literária e ensaística e parte para a América do Sul, primeiro na Argentina e Uruguay e depois no Brasil onde viverá até 1969. Após um primeiro período em que estuda biologia e se especializa em entomologia, dedica-se ao ensino universitário, participando da criação de Universidades por todo o Brasil. Passa, então, a ter também a cidadania brasileira. É neste período que retoma o estudo da literatura portuguesa que começa a ensinar, interessando-se pela religiosidade popular e pela tradição mitopoética dos povos de língua portuguesa, reinterpretando símbolos culturais, lendas e mitos em uma perspectiva emancipatória e progressista.
Na década de 1950, cria diversos centros de estudos e outros grupos organizados que visavam firmar o intercâmbio entre o Brasil, África e o Oriente, estabelecendo parcerias culturais especialmente com o Senegal de Léopold Senghor. Com o início da guerra em África, começa a propor, a partir do Brasil, a criação futura de uma Comunidade de Povos de Língua Portuguesa que superasse o colonialismo.
A partir de 1964, com o começo da ditadura militar no Brasil, Agostinho efetua diversas viagens. Vai a Moçambique, aos Estados Unidos e ao Japão, ensinando e colhendo informações que depois utilizará em seus escritos ensaísticos e literários. Desdobra-se em vários heterônimos, à imagem de Fernando Pessoa, sobre quem tanto escreveu, servindo-se deles para redigir as suas lembranças sul-americanas sob a forma de novelas.
Em 1969, morto Salazar, Agostinho decide regressar a Portugal, convicto de que o regime não duraria muito mais. Mantém uma enorme rede epistolar, colocando-se no centro de um constante intercâmbio de ideias e projetos que reunia centenas de pessoas de várias formações culturais, políticas e religiosas em todo o mundo, a todos enviando as suas edições de autor e as suas cartas-circulares que se articulam em obras grandiosas que incluem poesia, aforismo filosófico, comentário político, divulgação pedagógica e tradução (Agostinho traduziu dezenas de obras de mais de dez línguas diferentes).
A partir de 1974, com a Revolução dos Cravos e a instauração da Democracia em Portugal, Agostinho da Silva passa a ser visto cada vez mais como uma voz inconformada de intelectual rebelde e desconcertante, conhecendo nos últimos anos da sua vida uma enorme popularidade que utiliza para abalar as ilusões confortáveis da sociedade de consumo e as certezas falsas da cultura dominante, respondendo com paradoxos às perguntas maniqueístas que lhe dirigem, assumindo, despojadamente, a imprevisibilidade como metáfora por excelência do divino e a criatividade como o valor mais humanizante do ser humano: “Vai sendo o que sejas até seres o que és”.



[1] Filósofo.

12 de junho de 2015

Notas sobre o Culto do Espírito Santo na Arrábida


De memórias ancestrais da tradição histórico-cultural portuguesa, passando por reminiscências de Prisciliano (séc. IV), confluíram no séc. XIII, influências vindas da Calábria, na teologia do cisterciense Joaquim de Flora (ou, de Fiore). O abade teorizou ahistória humana em três fases: Idade do Pai, do Filho e a terceira Idade, do Espírito Santo, que consumaria a fraternidade entre todos os povos, conforme o significado Pentecostal expresso no Evangelho de S. João.
Estas ideias expandiram-se para a Península Ibérica, veiculadas pelos Franciscanos Espirituais, em Aragão, encontraram eco na obra e acção do médico, estudioso de alquimia, Arnaldo de Vilanova, seguido por discípulos, como Ramon Lull, também ligado aos franciscanos. As tendências difundidas na época, em Portugal tiveram concretização no Culto do Espírito Santo imaginado e instituído pela Rainha Santa Isabel, coadjuvada  pelos Franciscanos espirituais e o apoio do Rei D. Dinis.
Agostinho da Silva realçou que, desde séc. 
XIII, “Na sua forma mais perfeita, consistia aFesta, celebrada por altura do Pentecostes, na coroação de um imperador do Império do Espírito Santo, geralmente uma criança, na celebração de um banquete ritual, gratuito para todos que o quisessem, e no libertar-se presos da cadeia local”.
Com os Descobrimentos, este culto genuinamente português, estendeu-se aos Açores, Brasil, América, tendo sido silenciado em Portugal continental a partir do séc. 
XVI, pela Contra- Reforma. Resistiu ainda no séc. XX, em algumas localidades como Tomar, ou Sintra onde foi interrompido.
Na Serra da Arrábida, retomámos esta tradição transmitida pelo Pensamento de Agostinho da Silva, no encontro organizado pelo Império de S. Filipe do Espírito Santo. a 19 de Maio 1991, domingo de Pentecostes; com a presença de António Quadros dedicando “Trovas para o Menino Imperador - no Dia de Pentecostes”, ao ritual de Coroação das Crianças. Também, Dalila Pereira da Costa se uniu a esta celebração, como António Cândido Franco, Paulo Borges, Eduarda Rosa e outros amigos, António Telmo colaborava, então, connosco no projecto da Casa de Estudos Universo, em Setúbal.
Este encontro pentecostal tem sido continuado pelo Convento Sonho e Associação Agostinho da Silva, com o apoio do Convento da Arrábida - Fundação Oriente.
Enaltecendo a íntima harmonia com a Natureza, reiniciou-se o ciclo do Culto do Espírito Santo, preservando na essência: a Coroação da Criança, símbolo da inocência a imperar no mundo; a Liberdade de ser, e a Paz, simbolizadas na Pomba; a partilha do pão para todos, concretizada no Bodo; a exaltação do ideário de Fraternidade no convívio ecuménico, em diversidade de crenças, religiões e culturas.
Afirmou Agostinho da Silva, acerca desta celebração e relativamente às Trovas para o Menino Imperador, de António Quadros: “poema extraordinário, marcado a um tempo pela atenção ao Povo de Portugal e pela compreensão do que há de fundamental em sua cultura, em seu Amor da Terra e do Céu, e do Menino, como símbolo da perfeição que pode atingir em ambos seus campos, se realizou, íamos dizendo, a Festa do Espírito Santo na Serra da Arrábida, festa que foi de todo Portugal no século 
XIII, reinado de Dom Dinis e Santa Isabel, festa não apenas comemorativa, o que já seria muito, mas prospectiva e programática, o que é o supremo do pensamento e da acção. [...] Creio que o da Arrábida foi o ressurgir dele, aGrande Festa Portuguesa, o seu ressurgir para o País e para o Mundo” (George Agostinho, Uma Folhinha de Quando em Quando – Junho 91Império do Espírito Santo).
por Maurícia da Conceição 


10 de junho de 2015

Cidadania Integração e Identidade - Maneira de estar Lusa

Fraqueza de identidade nacional faz do Português o Imigrante modelar
Por António Justo
O emigrante português é feito de céu e terra, movimenta-se entre cidadão e estrangeiro sendo sua bandeira a saudade onde ventos estranhos movem a recordação. Nele mora o fado, aquela dor do mundo que o torna irmão de toda a criatura e de todos os povos. Como a onda do mar sente que o seu eu se constrói a partir do nós, por isso sofre o todo na parte e goza a parte no todo. Sob o cânone luso “à terra onde fores ter faz como vires fazer”, o português torna-se num imigrante adaptado. Neste sentido, talvez o português e o brasileiro sejam dos povos menos complicados e mais agradáveis, nos países de recepção, porque reconhecem e vivem a interculturalidade na consciência de que são ao mesmo tempo onda e mar (parte de um todo). O Povo português é especialista em integração como revela a sua maneira de estar diferente da de outros povos, quer em termos de colonização quer na qualidade de imigrantes.
Presença portuguesa e Visibilidade da sua Identidade cultural
O português não é estranho nas nações onde chega porque estranha é já nele a condição. Enquanto outros estrangeiros se integram e outros constroem as barricadas dos seus guetos, o português, geralmente, deixa-se assimilar reservando a portugalidade para a alma. É do génio português ter uma cidadania alargada (ser francês com os franceses, suíço com os suíços, alemão com os alemães…), nele palpita a alma universal. O emigrante é ele e as suas circunstâncias – é cidadania sem cidade na procura de uma identidade alargada. Nas suas asas traz o longe, nos seus pés traz o perto e no seu desejo a vontade de se tornar uma personalidade implantada.
Numa sociedade de templo profanado em que cada um faz dela um mercado, seria óbvio que o português acentuasse a sua identidade e expressasse não só como indivíduo mas como povo com missão universal; é importante tornar mais visível, no âmbito das instituições, a sua característica portuguesa, de humanidade e universalidade através de maior intervenção activa social, cultural, política e empresarial. Portugal que deu mundos ao mundo precisa de reflectir a sua identidade, não acentuando tanto a ideologia que ele assimilou da França nos tempos modernos mas mais o espírito europeu que o tornou grande no mundo, ao tornar-se expressão da Europa, através dos descobrimentos e da emigração. Neste sentido, tem também na Suíça o bom exemplo de uma nação pequena, mas também ela grande por ter sabido manter viva e cultivar no seu povo, a tradição do seu génio. A comunidade portuguesa radicada na Suíça pode reconhecer na bandeira suíça aquele sinal comum característico da sua identidade que os tornou grandes e lhes concederá perpetuidade.
Toda a vida individual e cultural é processo de identificação, um contínuo fluir para a realização e para a verdade. Nascemos como indivíduos, formando pouco a pouco a nossa identidade / consciência, num acumular de camadas formadas de educação e experiência de vida que determinam o nosso ser de pessoa. A formação da identidade consciente (personalidade – aquilo que dá visibilidade) acontece de maneira privilegiada num espaço livre que proporciona vestígios individuais e culturais adaptados à geografia e à cultura em diferentes ramos de expressão.
Portugal tem de recuperar a consciência de si não esbanjando a força da tensão que o tornaria forte se não resolvesse muitos dos seus problemas apenas com o tubo de escape que é a emigração. Antoine de Saint-Exupéry constatava: “O mundo inteiro afasta-se quando vê passar um Homem que sabe para onde vai”! (Esta é a diferença que marca na migração um cidadão ocidental e um cidadão muçulmano). Aquilo que se pode revelar como fraqueza de identidade nacional e faz do português o migrante modelar não é só fraqueza é também testemunho de alma grande e de ideário universal. O português não se deixa aprisionar em termos de cultura, quer ser ele e mundo sem  ser metido numa gaveta.
A nossa existência não se expressa só como indivíduos mas também como comunidade. A ignoração da identidade do povo conduz à apatia das massas e à morte da colectividade. O português, na qualidade de cidadão e de povo, continua a ter algo especial que é o seu sal, muito necessário para ajudar a temperar a vida dos povos do mundo numa consciência simples de irmãos que em conjunto querem celebrar a festa da vida.

Os portugueses no estrangeiro sobressaem pela fraqueza de identidade nacional que os torna, por vezes invisíveis onde vivem e consequentemente muito queridos em todas as sociedades acolhedoras. Enquanto outras etnias se afirmam, por vezes, pela negativa, contrapondo-se à cultura que os acolhe, os portugueses deixam-se assimilar facilmente, perdendo já na segunda e terceira geração o perfil exterior de português. Tanto a afirmação pelo gueto como o desaparecer pela assimilação não passam de extremos que deveriam ser resolvidos através de uma integração consciente na sociedade acolhedora. Não somos apenas indivíduos mas também povo. Uma política baseada na multicultura e no gueto contradiz o desenvolvimento cultural e social dos povos; este acontece num processo natural de intercultura, numa atitude aberta e benevolente de dar e receber, tal como mostraram os portugueses com o interculturalismo no Brasil. Acolhedores e acolhidos enriquecem-se mutuamente dando assim oportunidade ao desenvolvimento.
Não chega fortalecer elos pessoais de ligação urge criar estruturas

Portugal e os portugueses são portadores de uma grande cultura, não precisam de se esconder; com os descobrimentos, foi o povo da Europa que no século XIV e XV mais contribuiu para o desenvolvimento da humanidade, criando pontes entre continentes e civilizações. Daí a naturalidade de uma auto-estima que se quer mais presente num assumir de responsabilidades nas instituições culturais e políticas dos países hospedeiros. O esforço dos partidos portugueses no sentido de estarem presentes na emigração através dos deputados torna-se anacrónico se não acompanhado por uma política e uma estratégia de integração de emigrantes nas diferentes instituições dos países de imigração. Seria um equívoco centrar o discurso político em torno de quatro deputados (partidos) para a emigração e deste modo distrair o português da iminente necessidade de ele se integrar nas estruturas políticas das nações onde se encontram. Estas manifestam o grau de cidadania e de identidade dos grupos inseridos numa sociedade.
Uma identidade individual fraca enfraquece a identidade da comunidade e vice-versa. Numa altura em que a prática política europeia se manifesta doentia será preciso que cada pessoa e cada país redescubram a substância da sua identidade para poder assumir a responsabilidade e a missão como cidadãos e comunidades na construção de uma Europa à altura dos seus antepassados.
O 25 de Abril de 74, na resposta às exigências inovadoras do Vaticano II bem como à revolução 68 e à necessidade de democratizar Portugal, possibilitou novas experiências numa sociedade cada vez mais complexa a agir como colectivo no concerto das nações europeias. Como identidade colectiva histórica que sempre construiu pontes interculturais, resta-lhe consciencializar-se da sua tarefa e corporalidade necessárias em diáspora. A identidade é processo vivo, nunca acabado, entre cidadão e sociedade na construção da própria casa, da casa portuguesa, da casa onde nos encontramos e da casa universal, a que demos resposta outrora com os descobrimentos. Numa altura em que a Europa atravessa uma forte crise de identidade torna-se importante a consciencialização e fomento da própria identidade na relação com as identidades vizinhas. A diferença (identidade) é a constante natural na evolução de um todo feito de complementaridades (A Suíça é um país com uma democracia onde toda a Europa pode aprender).
Atendendo à fraca capacidade organizativa das comunidades portuguesas seria lógica uma preocupação primordial do Estado português em fomentar o associacionismo, tal como fez a Igreja nos princípios da emigração dos anos 60 na Europa. Não chega o amor dos portugueses e seus descendentes pelo país de seus pais e avós, é preciso que os governos implementem activamente a organização associativa no sentido de Portugal se tornar social e institucionalmente mais visível e presente. Não chegam elos de ligação, são precisas estruturas organizadas que possibilitem um rosto colectivo que mantem vivas as tradições e ideais do Portugal maior. Portugal é festa é celebração e como tal precisa de mais organização para melhor possibilitar uma sociedade global em festa...
Toda a sociedade civil política e religiosa deverá empenhar-se no sentido de impedir os défices de identidade. A nova geração emigrante traz pressupostos que lhe facilitariam uma maior visibilidade social. As diversas associações sociais, religiosas e culturais têm aqui uma missão de relevo de modo a preencher também o vácuo da burocracia diplomática e parlamentar. Como contraposto à ilusão política permanece a acção individual e associativaNecessita-se mais e mais construir uma nacionalidade espiritual, o portuguesismo de rosto universal, a ser reconhecido pelo sistema político parlamentar para que nessa qualidade fomente as associações e iniciativas num agir intercultural inclusivo. Em comunidades passadas a influência da massa era esmagadora, hoje espera-se mais do indivíduo na renovação das comunidades.
A verdadeira integração dá-se na convivência do dia-a-dia com os vizinhos e expressa-se no mercado de trabalho, a nível empresarial, na cultura e na política. A identidade social organiza-se principalmente em torno da língua e da cultura (religião) o que, contudo, nos não deve levar aos exageros da estratégia árabe. Não existe uma sociedade concreta nem abstracta que se possa basear apenas num senso comum de paz, liberdade e justiça. Isto permanece um sonho que deverá levar à formação de identidades abertas nesse sentido mas nunca se conseguirá porque a identidade pressupõe a diferença. O filósofo Auguste Comte defendia a ideia de que uma sociedade sem religião não pode subsistir, desintegrando-se com o tempo nas redes da polis. De facto também a autonomia é um sonho necessário mas não alcançável. A solidão experimentada na contemplação do mar ou das estrelas cria a consciência da necessidade de um todo.
Facit: Torna-se urgente uma maior participação na vida social do país de acolhimento e na política através de uma participação activa e filiação nos diferentes partidos do país de acolhimento. Esta seria a melhor exemplo de integração, um testemunho de cidadania e uma maneira de dar rosto a Portugal. (1)
António da Cunha Duarte Justo
(1) Minha homenagem ao 10 de Junho – o dia de Portugal e das comunidades portuguesas