[...] “A justiça há-de ser para nós amparo criador, consolação
e aproveitamento das forças que andam desviadas; há-de ter
por princípio e por fim o desejo de uma Humanidade melhor;
há-de ser forte e criadora; no seu grau mais alto não a
distinguiremos do amor.
Por isso mesmo estarás sempre ao lado dos vencidos que se
tratam com arrogância, com brutalidade ou com desprezo;
não te importarás que as suas ideias sejam diferentes das tuas,
mover-te-á o olhares que são homens e não hás-de duvidar nem
um momento da infinita possibilidade que neles há de um mais
definido pensamento e de um mais perfeito proceder; não os vejas
condenados para sempre à mesma estrada que tomaram; que exista
para ti a esperança das reflexões e dos regressos.
Ao teu amigo ou adversário dirás sempre a verdade a respeito dos
vencidos, sem que te impeçam o afecto ou o ódio: levanta a voz,
seja qual for o lugar ou o instante, a favor dos que, tombados na
luta, ainda têm de sofrer as prepotências; protesta, enquanto te
deixarem protestar, contra a vileza, contra a cobardia dos que esmagam
quem têm à mercê, dos que torturam os corpos e as mentes, dos que
se armam contra os desarmados; e, quando não te deixarem protestar,
protesta ainda.
Nessa batalha a ninguém feres; vais servir os próprios que censuras;
pode ser que às tuas palavras se convertam os Césares e deixe o centurião
tombar a espada; pode ser que os cativos se redimam; mas, se nada
conseguires de imediato, terás dado ao mundo um exemplo de liberdade
interior e de firme coragem; terás lançado a tua pedra – e não das menores –
para a grande construção; terás ganho para a vida uma força ante a qual,
mais tarde, se hão-de aplanar os ásperos caminhos e abater os
alterosos obstáculos.”
Agostinho da Silva, in Textos e Ensaios Filosóficos I,
Âncora Editora, Abril 1999 (p.112,113)