21 de julho de 2024

A FORÇA DE DESTINAÇÃO DO PENSAR POETIZANTE DE AGOSTINHO DA SILVA Lúcia Helena Alves de Sá Agostinho da Silva, alegoricamente, deu a si mesmo a alcunha de “marinheiro”, figura de um argonauta ao leme que vence tormentas e tormentos, cedido à disciplina do mar e desapegado das coisas vis para exercer e confiar na liberdade absoluta de ser ele mesmo, sendo o mundo todo, porque “o homem sonha, a obra nasce”. Não importa que seja “curta vida”, o importante é ser grande para o “longo mar”, pois “Navegar é preciso; viver não é preciso”, e como a todo ser navegante interessa aprender o navegar — concebido como ação dramática de aprendizagem para se tornar autor e ator do seu Ser-navegante —, certamente, foi homem de Alma Oceânica. Diz-se ter sido “soldado”, metáfora da vontade guerreira e monástica do espírito de serviço, agindo de forma ordenada e integradora de modo a despertar a vocação das pessoas para que sejam, cada uma delas, poetas à solta, cumprindo essa missão com todo o seu coração e com todo o seu intelecto. Homem de “vida conversável” que “não se limitou a ter ideias, mas a ser as ideias que teve”, dando a si mesmo a chance de fazer de sua vida uma obra em diálogo na qual a variedade na unidade se harmonizam. Incapaz de estar confortável no “estilo do previsível”, Agostinho nunca se rendeu a fatos que não fossem verídicos e soube rejeitá-los quando em contradição com sua própria natureza que é a da plena, infinita e iniludível liberdade. Foi, também, “cavaleiro andante” de espantosa erudição e de senso agudo do político, tendo, por vários quadrantes, espalhado seu pensar poetizante, fundamentado em saberes filosóficos e espirituais, que tem o potencial de inspirar e orientar indivíduos. Como um “gênio”, contagiava a todos com um ânimo incomum, livre dos incômodos de tempo e de espaço. Leal às suas ideias diversas e complexas, muitas delas paradoxais e de filosofia multifacetada, devotado a um certo pensamento crítico invulgar, e fiel à Ética, base para a conduta humana e para a ecúmena, assim cumpriu a vontade de ser “mestre” da vida segura e conversável acrescentada à beleza do mundo. Agostinho, sendo “um amável pastor de sonhos, um enérgico e paciente jardineiro da esperança”, esteve a conclamar uma “república humana, universal”, regida pelos dons do Espírito Santo [o ser irmão do mundo] e movida por uma “aristocracia do coração”, na qual todos os homens, indistintamente, estariam livres para gozar tanto dos prazeres materiais (comida, educação, saúde e lazer) quanto dos prazeres espirituais (liberdade, contemplação e criação). Nessa senda agostiniana, todos poderiam contribuir com a sua “centelha de fogo” [análoga às “Índias interiores”] para fazer exsurgir a Irmandade Universal, equivalente à instauração da Cultura da Paz (tão atualmente anunciada): estruturas democráticas e respeitabilidade mundial, unidade de vida e de compromisso planetário, despojamento dos requintes da cotidianeidade supérflua do homem moderno. Eis a força de destinação agostiniana: uma energia intrínseca conectada a uma essência mais profunda que impulsiona cada indivíduo em direção a um destino único de contribuição para um bem maior justo, compassivo e espiritualmente enriquecedor, e significativo de expressão e de realização que transcendem limitações (auto)impostas. Nessa trilha de sonho e de esperança, que “o mundo acaba sempre por fazer o que sonharam os poetas”, Agostinho arquitetou o tempo da bonança onde estariam garantidos a toda gente os direitos humanos, a equidade e a compaixão solidária. Isso corresponde à consolidação do Reino do Espírito Santo onde estabelecer-se-ia um estado de elevada consciência coletiva — a era de realização da ecúmena que envolveria toda a humanidade [em seu potencial humano], restaurando a ética e os valores universais, em contraposição à decadência e ao desequilíbrio moral, ao materialismo e à corrupção das sociedades contemporâneas. Mesmo que esse reino a nós se apresente como uma metáfora filosófica agostiniana, é uma utopia do possível [porque necessária para que nos realizemos como humanidade] repleta de uma tônica discursiva da consciência de civilização, mediada pela democracia e pela justiça, id est, crítica ao presente e novo arranjo dos presentes elementos para fazer surgir, renovada, outra aurora primaveril de liberdade ideal, pois “o que é verdadeiramente tradicional é a invenção do futuro”: “o importante é nunca parar de questionar”. A isso se poderá chegar gradualmente e pelo esforço fraterno e vigilante de todos em força de destinação, repudiando as repressões, a tirania da lei, a coação de governo, a restrição de cultura, a propriedade de homens e de terra; e resistindo a qualquer tipo de sujeição que impede as pessoas de pensar e de ter iniciativa para que as leis da humanidade e da razão possam ser restauradas. Agostinho, em modo contínuo alethopoiético, esteve a desafiar os paradigmas estabelecidos, não se submetia a limitações dogmáticas ou a fronteiras rígidas do conhecimento. Como um ser excepcional — um “homem total” ou um “homem do mundo” — deixou aparecer o seu “espírito à solta” cumprindo “o projeto do sonho ou o sonho do projeto” ou ao que chamo de a razão que sonha ou o sonho da razão, conferindo a seu ethos um aspecto transbordante. É inevitável conferir a ele o título de "português mais notável da segunda metade do século XX, como Fernando Pessoa foi da primeira". Uma personalidade luso migrante de espírito aventureiro, semelhante ao dos melhores do Renascimento português, “investigador de artes, almas, ideias e ideais”, Agostinho da Silva semeou a sua espantosa erudição nos dois lados do Atlântico, trazendo-a ao ato. Ininterruptamente, fez presente em sua obra e em sua práxis uma “generosa teoria civilizatória” no que resulta a força de destinação do seu pensar poetizante como uma referência moral no panorama contemporâneo português: poeta vadio para sempre a haver.

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