por Ângelo Cristóvão
(Academia Galega da Língua Portuguesa)
A recente aprovação da lei 1/2014 de 24 de março, Lei Para o Aproveitamento
da Língua Portuguesa e Vínculos com a Lusofonia, ou Lei Paz-Andrade, pela
unanimidade dos deputados do Parlamento Autónomo da Galiza, representa
uma mudança significativa na orientação da política linguística e na estratégia
global da Comunidade Autónoma galega, que precisa de concretização através de
ações do governo e da imprescindível colaboração da sociedade.
Durante as últimas décadas, todo o esforço de relacionamento e aproximação
linguística e cultural da Galiza em relação aos países de língua portuguesa
foi realizado por personalidades e entidades da sociedade civil, em condições
de escasso ou nulo apoio político. Estamos agora numa nova etapa em que
essa experiência, esse caminho e discurso de integração no espaço
lusófono é recolhido e legitimado institucionalmente, politicamente.
A base deste êxito reside no trabalho do movimento lusófono galego, e mais
recentemente nas mais de 17 000 assinaturas de cidadãos que apoiaram
a Iniciativa Legislativa Popular Valentim Paz-Andrade. Apresentada com
grande sucesso pelo porta-voz da Comissão Promotora da ILP, José Morell,
foi aprovada pela unanimidade dos deputados para tramitação
no Parlamento da Galiza,
em 8 de março de 2013. Aceite o texto inicial, num segundo momento foi
preciso chegar a um entendimento sobre a redação definitiva da lei.
O governo e o grupo parlamentar do Partido Popular que o sustenta
decidiu, em outubro de 2013, negociar o texto com os promotores da
iniciativa em representação dos assinantes, da sociedade civil.
Nesta negociação procurou-se recolher, quanto possível,
as propostas dos grupos da oposição, PSdeG e AGE, apresentadas
formalmente através de emendas ao texto originário. Também
foi tido em conta o ponto de vista dos representantes de algumas
instituições culturais tradicionalmente contrárias à lusofonia galega,
de forma que não ficassem excluídas do acordo político.
Desta forma, num processo de consultas e diálogo que se prolongou
durante vários meses, a Comissão Promotora da Iniciativa Popular
Valentim Paz-Andrade, com a colaboração ativa e discreta de todas
as partes implicadas, logrou o mais amplo consenso possível, pondo de
acordo o governo e os grupos da oposição numa unanimidade infrequente.
A negociação converteu os promotores da lei Paz-Andrade e, em definitivo,
as entidades lusófonas galegas, em interlocutoras de facto e cooperadoras
necessárias na aplicação da Lei. A Comissão Promotora, com o apoio
de personalidades da cultura e o assessoramento das associações
lusófonas galegas, entre as quais a AGLP elaborou, durante o
verão de 2013, um Parecer sobre as possíveis linhas de
atuação a desenvolver na aplicação da lei. Foi apresentado pelo
nosso colega Joám Evans Pim em outubro de 2013 na
II Conferência Internacional sobre o Futuro da Língua Portuguesa no
Sistema Mundial, realizada na Universidade de Lisboa, e entregue ao governo
galego e grupos do Parlamento Autónomo, recebendo uma excelente acolhida.
O documento, disponível na Rede, inclui algumas das medidas que o governo
autónomo poderia aplicar nos próximos tempos nas três áreas de intervenção
dispostas na lei: a) Introdução do ensino do português no sistema escolar galego;
b) Produção, intercâmbio e divulgação de produtos audiovisuais em português nas
televisões e rádios da Galiza; c) Participação da Galiza em foros internacionais
de língua portuguesa, como os da CPLP.
A Lei, aprovada por unanimidade dos deputados em março de 2014, foi publicada
no Diário Oficial da Galiza em 8 de abril e posteriormente no Boletim Oficial do
Estado espanhol, entrando em vigor sem que o governo de Madrid tenha
apresentado reparo algum ao seu conteúdo, o que constitui outra prova da
abrangência do consenso que esta iniciativa tem gerado.
Do ponto de vista das políticas linguísticas no Estado espanhol, é o único
caso em que uma Comunidade Autónoma aprova uma lei para promover uma
língua de um estado vizinho que é, também, língua oficial em outros
8 estados geograficamente situados em todos os continentes. Contudo,
dizer isto é ficar muito aquém da intenção do legislador e do significado
do texto, pois a própria lei, no seu preâmbulo, reconhece a singular relação
entre a variedade portuguesa e a variedade galega da língua comum,
assinalando o facto de existir uma fácil “intercompreensão” entre os
falantes de aquém e além Minho. Ficou estabelecida, deste modo, uma
fórmula de compromisso aceitável por todas as partes que não acarreta
mudanças na legislação vigorante, amparando a promoção da língua portuguesa
nas “competências em línguas estrangeiras” da Comunidade Autónoma Galega.
Aceite este princípio, com um consenso alargado a todas as forças políticas e
administrações implicadas, estamos certos que este passo legal facilitará a
criação de fórmulas institucionais para que o amplo abano de associações
e instituições culturais e cívicas lusófonas da Galiza possam desenvolver em
pleno todas as suas potencialidades, e a sociedade venha tirar proveito
da nossa língua comum como instrumento eficaz de comunicação
e vertebração nacional.
A situação faz virar a atenção para diversos reptos, dificuldades e
carências que se abrem nesta altura. É preciso perceber adequadamente a
relação da língua portuguesa com os cidadãos galegos. Atendendo à realidade
social, sabemos que podem existir vários tipos de motivações para aprender o
português padrão. Enquanto para alguns é adquirir conhecimentos da língua
nacional da Galiza, que lhes permite usar o galego com plenitude, para outros
será uma língua de relação instrumental, laboral ou cultural.
Todos são legítimos e coexistem na nossa sociedade. Uma grande maioria
se aproxima do português com um nível alto de compreensão prévia,
por conhecimento da variedade galega. Poderíamos dizer que, em termos gerais,
os galegos não começam no grau zero, mas no nível intermédio. Dar aulas de
português padrão na Galiza não é o mesmo que ministrar noutras latitudes
linguísticas. Os docentes conhecem este facto e são conscientes da necessidade
de adaptar os manuais escolares ou criar uns novos, específicos, para os nossos estudantes.
Por outro lado, a ninguém escapa que o período de políticas antilusófonas,
desenvolvidas durante as últimas 3 décadas pelos sucessivos governos autónomos,
criou uma rede de interesses que, nesta altura, manifesta uma evidente resistência
à mudança, resultando difícil de ultrapassar no curto prazo. Será preciso tê-lo
em conta e fazer uma gestão apropriada desta questão.
A necessidade de promover uma norma do português galego, ideia até agora
restrita a poucas entidades, começará a ter em breve uma maior audiência pela
força do desenvolvimento dos factos. Precisa-se entender que a norma galega se
insere no português europeu e dentro dos critérios aprovados pelo Acordo Ortográfico
de 1990, mas apresenta características próprias na pronúncia, léxico, algumas
formas verbais e, em geral, uma maior proximidade do antigo galaico-português.
A articulação de fórmulas para a participação galega nos foros internacionais da
língua portuguesa leva consigo esta opção que, como oportunidade, se revela
também de grande versatilidade discursiva, entre a unidade gráfica e o necessário
reflexo de traços identitários da Galiza. A este respeito, cabe lembrar que a
utilização do português padrão em foros internacionais é cada vez mais normal
entre os representantes políticos eleitos, como se tem evidenciado no
Parlamento Europeu, e não só.
A recente revisão, ampliação e adaptação do Dicionário Estraviz ao Acordo Ortográfico,
primeiro dicionário galego da língua portuguesa, é mostra do empenho e bom fazer
do seu autor, Isaac Alonso Estraviz, e da capacidade de colaboração entre
entidades galegas (AGAL, AGLP e Fundação Meendinho) para contribuir
de forma eficaz e atual a este património comum. Com 130 000 entradas é o
maior dicionário produzido na Galiza, sendo atualizado diariamente.
Em breve o Vocabulário Ortográfico Galego, em cuja elaboração está trabalhando
uma comissão da AGLP sob a direção do académico Carlos Durão,
com um número similar de entradas, virá completar o perfil lexicográfico galego.
A mudança que se está a operar na Galiza, com a aprovação da lei Paz-Andrade,
não pode deixar indiferentes as instituições da CPLP nem os governos
representados. Especialmente Portugal, que tem, nesta altura, uma dupla
responsabilidade. Os redatores da lei Paz-Andrade quiseram manter e consolidar
um dos signos mais enraizados na tradição da cultura galega, assinalando
Portugal como sócio preferente da Galiza. Um privilégio que, em ocasiões,
não tem encontrado correspondência em determinados governos portugueses.
São umas relações alicerçadas no intercâmbio cultural que, desde meados
do século XIX se vem produzindo entre intelectuais galegos e portugueses,
e que, no nosso entender, ninguém tem direito a dilapidar.
Vistos os factos e consideradas as condições atuais, podemos dizer
que a posição galega no contexto da língua portuguesa foi representada
até agora por entidades privadas, da sociedade civil e de cariz claramente
reintegracionista, participando em numerosos eventos de âmbito cultural
ou académico, estabelecendo relações perduráveis, criando iniciativas
transfronteiriças, tecendo relações e amizades. O Parlamento aprovou uma
lei que assume e legitima este longo percurso histórico. Em breve serão também
outros atores, como o Governo Galego, a manter uma posição e um discurso
institucional público em relação à língua portuguesa. Não é previsível que
esta coincida com a da Academia Galega da Língua Portuguesa, pois aquele
tem outros compromissos e atende outros critérios, menos técnicos, mais políticos.
Contudo o interesse geral aponta para a necessidade de manter esta
colaboração mútua, já solicitada e confirmada publicamente pelo Secretário-Geral
de Política Linguística do governo autónomo, durante a sua intervenção no
Seminário que sobre a Lei Paz-Andrade organizou a AGLP em Santiago de Compostela
em 26 de junho de 2014.
O grande repto que temos pela frente é manter a coordenação
entre todos os atores galegos,
o que reforçaria esta posição já conhecida e elaborada durante as
últimas décadas
por diversos agentes culturais, universitários e intelectuais galegos
no espaço da língua portuguesa.
A estratégia da Galiza no processo de aproximação da Lusofonia
beneficia desta tradição consolidada, do facto fazer parte do
território originário da língua comum, da sua localização geográfica,
da longa tradição de país com vocação marítima e atlântica, das amplas
redes tecidas pela emigração nos quatro cantos do mundo, da ausência
de conotações históricas negativas no imaginário coletivo dos falantes de
português, e de ser um espaço com um alto nível económico e de
desenvolvimento humano próximo da média europeia, o que poderá
resultar atraente para os países emergentes e em vias de desenvolvimento.
A Galiza conta, portanto, com uma boa posição de partida, com vantagens
claras que deverá saber maximizar, mesmo em relação a outros atores próximos,
no desejável horizonte de um relacionamento triangular estável entre a Europa,
América e África, sem esquecer Timor, Macau e os territórios de
língua portuguesa da Ásia. (Fonte MIL)
(*) Comunicação ao XXII Colóquio da Lusofonia - Seia, Portugal - 29 setembro 2014
Um comentário:
Os nossos irmãos Galegos estão de parabens.
Vem-me a ideia a frase de Fernando pessoa, no "Livro do Desassossego": "A minha pátria é a língua portuguesa".
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