14 de setembro de 2013
Brasil pode desperdiçar oportunidade única de propor novo modelo civilizatório
Enquanto acharmos que melhorar a vida das pessoas é dar-lhes mais dinheiro
para comprarem uma televisão, em vez de melhorar o saneamento,
o abastecimento de água, a saúde e a educação fundamental, não vai dar.
Você ouve o governo falando que a solução é consumir mais, mas não vê
qualquer ênfase nesses aspectos literalmente fundamentais da
vida humana nas condições dominantes no presente século.
Eduardo Viveiros de Castro dispara: iludido por noção
ultrapassada de progresso, Brasil pode desperdiçar
oportunidade única de propor novo modelo civilizatório
Entrevista a Júlia Magalhães
Qual é sua percepção sobre a participação política do brasileiro?
Preferiria começar por uma desgeneralização: vejo a sociedade brasileira
como profundamente dividida no que concerne à sua visão do país e do futuro.
A ideia de que existe um Brasil, no sentido não-trivial das ideias de unidade
e de brasilidade, parece-me uma ilusão politicamente conveniente
sobretudo para os dominantes) mas antropologicamente equivocada.
Existem no mínimo dois, e, a meu ver, bem mais Brasis.
O conceito geopolítico de Estado-nação unificado não é descritivo,
mas prescritivo. Há fraturas profundas na sociedade brasileira.
Há setores da população com uma vocação conservadora imensa; eles
não integram necessariamente uma classe específica, embora as chamadas
“classes médias”, ascendentes ou descendentes, estejam bem representadas ali.
Grande parte da chamada sociedade brasileira — a maioria, infelizmente,
temo — se sentiria muito satisfeita sob um regime autoritário, sobretudo
se conduzido mediaticamente pela autoridade paternal de uma personalidade forte.
Mas isso é uma daquelas coisas que a minoria libertária que existe no país,
ou mesmo uma certa medioria “progressista”, prefere manter envolta em um silêncio
embaraçado. Repete-se a todo e a qualquer propósito que o povo brasileiro é
democrático, “cordial”, amante da liberdade, da igualdade e da fraternidade
– o que me parece uma ilusão muito perigosa. É assim que vejo a “participação
política do povo brasileiro”: fraturada, dividida, polarizada, uma polarização
que não está necessariamente em harmonia com as divisões politicas oficiais
partidos etc.). O Brasil permanece uma sociedade visceralmente escravocrata,
renitentemente racista, e moralmente covarde. Enquanto não acertarmos contas
com esse inconsciente, não iremos “para a frente”. Em outros momentos, é claro,
soluços insurreicionais esporádicos, e uma certa indiferença pragmática em relação
aos poderes constituídos, que se testemunha sobretudo entre os mais pobres,
ou os mais alheios ao teatro montado pelo andar de cima, inspiram modestas
utopias e moderados otimismos por parte daqueles que a historia colocou na
confortável posição de “pensar o Brasil”. Nós, em suma.
O que é preciso para mudar isso?
Falar, resistir, insistir, olhar por cima do imediato – e, evidentemente, educar.
Mas não “educar o povo”, como se a elite fosse muito educada e devêssemos
e pudéssemos) trazer o povo para um nível superior; mas sim criar as condições
para que o povo se eduque e acabe educando a elite, quem sabe até livrando-se dela.
A paisagem educacional do Brasil de hoje é a de uma terra devastada, um deserto.
E não vejo nenhuma iniciativa consistente para tentar cultivar esse deserto.
Pelo contrário: chego a ter pesadelos conspiratórios de que não interessa ao
projeto de poder em curso modificar realmente a paisagem educacional do Brasil:
domesticar a força de trabalho, se é que é isso mesmo que se está sinceramente
tentando (ou planejando), não é de forma alguma a mesma coisa que educar.
Isto é só um pesadelo, decerto: não é assim, não pode ser assim, espero que não
seja assim. Mas fato é que não se vê uma iniciativa de modificar a situação.
Vê-se é a inauguração bombástica de dezenas de universidades sem a mínima
infra-estrutura física (para não falar de boas bibliotecas, luxo quase
impensável no Brasil), enquanto o ensino fundamental e médio permanecem
grotescamente inadequados, com seus professores recebendo uma miséria,
com as greves de docentes universitários reprimidas como se eles fossem bandidos.
A “falta” de instrução — que é uma forma muito particular e perversa de instrução
imposta de cima para baixo — é talvez o principal fator responsável pelo
conservadorismo reacionário de boa parte da sociedade brasileira.
Em suma, é urgente uma reforma radical na educação brasileira.
“A floresta e a escola”, sonhava Oswald de Andrade. Infelizmente,
parece que deixaremos de ter uma e ainda não teremos a outra.
Pois sem escola, aí é que não sobrará floresta mesmo.
Por onde começaria a reforma na educação?
Começaria por baixo, é lógico, no ensino fundamental
– que continua entregue às moscas. O ensino público teria de
ter uma política unificada, voltada para uma – com perdão da expressão –
“revolução cultural”. Não adianta redistribuir renda (ou melhor,
aumentar a quantidade de migalhas que caem da mesa cada vez mais farta dos ricos)
apenas para comprar televisão e ficar vendo o BBB e porcarias do mesmo quilate,
se não redistribuímos cultura, educação, ciência e sabedoria; se não damos ao
povo condições de criar cultura em lugar de apenas consumir aquela produzida
“para” ele. Está havendo uma melhora do nível de vida dos mais pobres,
e talvez também da velha classe média – melhora que vai durar o tempo que
a China continuar comprando do Brasil e não tiver acabado de comprar a África.
Apesar dessa melhora no chamado nível de vida, não vejo melhora na qualidade
efetiva de vida, da vida cultural ou espiritual, se me permitem a palavra arcaica.
Ao contrário. Mas será que é preciso mesmo destruir as forças vivas,
naturais e culturais, do povo, ou melhor, dos povos brasileiros para
construir uma sociedade economicamente mais justa? Duvido.
Nesse cenário, quais os temas capazes de mobilizar a sociedade brasileira, hoje?
Vejo a “sociedade brasileira” imantada, pelo menos no plano de sua
auto-representação normativa por via da midia, por um ufanismo oco,
um orgulho besta, como se o mundo (desta vez, enfim) se curvasse ao Brasil.
Copa, Olimpíadas… Não vejo mobilização sobre temas urgentíssimos,
como esses da educação e da redefinição de nossa relação com a terra,
isto é, com aquilo que está por baixo do território. Natureza e Cultura,
em suma, que hoje não apenas se acham mediadas, mediatizadas pelo Mercado,
mas mediocrizadas por ele. O Estado se aliou ao Mercado, contra a Natureza
e contra a Cultura.
Esses temas ainda não mobilizam?
Existe alguma preocupação da opinião pública com a questão ambiental,
um pouco maior do que com a educacional – o que não deixa de ser para
se lamentar, pois as duas vão juntas. Mas tudo me parece
“too little, too late”: muito pouco, e muito tarde. Está demorando
tempo demais para se espalhar a consciência ambiental, o sentido de
urgência absoluta que a situação do planeta impõe a todos nós.
Essa inércia se traduz em pouca pressão sobre os governos, as corporações,
as empresas – estão investindo cada vez mais na historia da carochinha
do “capitalismo verde”. E pouca pressão sobre a grande imprensa,
suspeitamente lacônica, distraída e incompetente quando se trata
da questão das mudanças climáticas.
Não se vê a sociedade realmente mobilizada, por exemplo, por Belo Monte,
uma monstruosidade provada e comprovada, mas que tem o apoio desinformado
(é o que se infere) de porções significativas da população do Sul e Sudeste,
para onde irá boa parte da energia que não for vendida a preço de banana
paras as multinacionais do alumínio fazerem latinha de sakê, no baixo Amazonas,
para o mercado asiático. Faz falta um discurso politico mais agressivo
em relação à questão ambiental. É preciso sobretudo falar aos povos,
chamar a atenção de que saneamento básico é um problema ambiental,
dengue é problema ambiental, lixão é problema ambiental.
Não é possível separar desmatamento de dengue e de saneamento básico.
É preciso convencer a população mais pobre de que melhorar as condições
ambientais é garantir as condições de existência das pessoas.
Mas a esquerda tradicional, como se está comprovando, mostra-se
completamente despreparada para articular um discurso sobre a
questão ambiental. Quando suas cabeças mais pensantes falam,
tem-se a sensação de que estão apenas “correndo atrás”, tentando
desajeitadamente capturar e reduzir ao já-conhecido um tema novo,
um problema muito real que não estava em seu DNA ideológico e filosófico.
Isso quando ela, a esquerda, não se alinha com o insustentável
projeto ecocida do capitalismo, revelando assim sua comum origem
com este último, lá nas brumas e trevas da metafísica
antropocêntrica do Cristianismo.
Enquanto acharmos que melhorar a vida das pessoas é dar-lhes mais dinheiro
para comprarem uma televisão, em vez de melhorar o saneamento,
o abastecimento de água, a saúde e a educação fundamental, não vai dar.
Você ouve o governo falando que a solução é consumir mais, mas não vê
qualquer ênfase nesses aspectos literalmente fundamentais da vida humana
nas condições dominantes no presente século.
Não se diga, por suposto, que os mais favorecidos pensem melhor e vejam
mais longe que os mais pobres. Nada mais idiota do que esses Land Rovers
que a gente vê a torto e a direito em São Paulo ou no Rio, rodando com
plásticos do Greenpeace e slogans “ecológicos” colados nos pára-brisas.
Gente refestelada nessas banheiras 4×4 que atravancam as ruas e bebem o
venenoso óleo diesel, gente que acha que “contato com a natureza”
é fazer rally no Pantanal…
É uma situação difícil: falta instrução básica, falta compromisso da midia,
falta agressividade política no tratar da questão do ambiente — isso quando
se acha que há uma questão ambiental, o que está longe de ser o caso de
nossos atuais Responsáveis. Estes mostram, ao contrário e por exemplo,
preocupação em formar jovens que dirijam com segurança, e assim ao mesmo
tempo mantêm sua aposta firme no futuro do transporte por carro individual
numa cidade como São Paulo, em que não cabe nem mais uma agulha. Um governo
que não se cansa de arrotar grandeza sobre a quantidade de veiculos
produzidos por ano. É um absurdo utilizar os números da produção de
veiculos como indicador de prosperidade econômica. Isso é uma proposta podre,
uma visão tacanha, um projeto burro de país.
Você está dizendo que muitos apelos ao consumo vêm do próprio governo.
Mas também há um apelo muito grande que vem do mercado. Como você avalia isso?
O Brasil é um país capitalista periférico. O capitalismo industrial-financeiro
é considerado por quase todo mundo hoje como uma evidência necessária, o modo
incontornável de um sistema social sobreviver no mundo de hoje. Entendo,
ao contrário de alguns companheiros de viagem, que o capitalismo sustentável
é uma contradição em termos, e que se nossa presente forma de vida econômica
é realmente necessária, então logo nossa forma de vida biológica, isto é, a
espécie humana, vai-se mostrar desnecessária. A Terra vai favorecer outras
alternativas.
A ideia de crescimento negativo, ou de objeção ao crescimento, a ética da
suficiência são contraditórias com a lógica do capital. O capitalismo depende do
crescimento contínuo. A ideia manutenção de um determinado patamar de equilíbrio
na relação de troca energética com a natureza não cabe na matriz econômica
do capitalismo.
Esse impasse, queiramos ou não, vai ser “solucionado” pelas condições
termodinâmicas do planeta em um período muito mais curto do que imaginávamos.
As pessoas fingem não saber o que está acontecendo,
preferem não pensar no assunto,
mas o fato é que temos que nos preparar para o pior. E o Brasil, ao contrário,
está sempre se preparando para o melhor. O otimismo nacional diante de uma
situação planetária para lá de inquietante é extremamente perigoso, e a
aposta de que vamos nos dar bem dentro do capitalismo é algo ingênua, se
é que não é, quem sabe, desesperada.. O Brasil continua sendo um país
periférico, uma plantation relativamente high tech que abastece de produtos
primários o capitalismo central. Vivemos de exportar nossa terra e nossa
água em forma de soja, açúcar, carne, para os países industrializados
– e são eles que dão as cartas, controlam o mercado. Estamos bem nesse
momento, mas de forma alguma em posição de controlar a economia mundial.
Se mudar um pouco para um lado ou para o outro, o Brasil pode simplesmente
perder esse lugar à janela onde está sentado hoje. Sem falar, é claro,
no fato de que estamos vivendo uma crise econômica mundial que se tornou
explosiva em 2008 e está longe de acabar; ninguém sabe onde ela vai parar.
O Brasil, nesse momento da crise, está em uma espécie de contrafluxo do
tsunami, mas quando a onda quebrar vai molhar muita gente.
Essas coisas têm de ser ditas.
E como você avalia a relação dessa realidade macropolítica,
macroeconômica, com as realidades do Brasil rural,
dos ribeirinhos, dos indígenas?
O projeto de Brasil que tem a presente coalizão governamental
sob o comando do PT é um no qual ribeirinhos, índios, camponeses,
quilombolas são vistos como gente atrasada, retardados socioculturais
que devem ser conduzidos para um outro estágio. Isso é uma concepção
tragicamente equivocada. O PT é visceralmente paulista, seu projeto
é uma “paulistanização” do Brasil. Transformar o interior do país
numa fantasia country: muita festa do peão boiadeiro, muito carro
de tração nas quatro, muita música sertaneja, bota, chapéu, rodeio,
boi, eucalipto, gaúcho. E do outro lado cidades gigantescas
e impossíveis como São Paulo. O PT vê a Amazônia brasileira
como um lugar a se civilizar, a se domesticar, a se rentabilizar,
a se capitalizar. Esse é o velho bandeirantismo que tomou conta de
vez do projeto nacional, em uma continuidade lamentável entre a
geopolítica da ditadura e a do governo atual. Mudaram as condições
políticas formais, mas a imagem do que é uma civilização brasileira,
do que é uma vida que valha a pena ser vivida, do que é uma sociedade
que esteja em sintonia consigo mesma, é muito, muito parecida.
Estamos vendo hoje, numa ironia bem dialética, o governo comandado
por uma pessoa perseguida e torturada pela ditadura realizando
um projeto de sociedade encampado e implementado por essa mesma
ditadura: destruição da Amazônia, mecanização, transgenização e
agrotoxificação da “lavoura”, migração induzida para as cidades.
Por trás de tudo, uma certa ideia de Brasil que o vê, no início
do século XXI, como se ele devesse ser o que os Estados Unidos
foram no século XX. A imagem que o Brasil tem de si mesmo é,
sob vários aspectos, aquela projetada pelos Estados Unidos
nos filmes de Hollywood dos anos 50 – muito carro, muita
autoestrada, muita geladeira, muita televisão, todo mundo feliz.
Quem pagava por tudo isso éramos, entre outros, nós.
(Quem nos pagará, agora? A África, mais uma vez? O Haiti? A Bolivia?).
Isso sem falarmos na massa de infelicidade bruta gerada por esse modo
de vida para seus beneficiários mesmo.
É isso que vejo, uma tristeza: cinco séculos de abominação continuam aí.
Sarney é um capitão hereditário, como os que vieram de Portugal para
saquear e devastar a terra dos índios. O nosso governo dito de esquerda
governa com a permissão da oligarquia e dos jagunços destas para governar,
ou seja, pode fazer várias coisas desde que a parte do
leão continue com ela.
Toda vez que o governo ensaia alguma medida que ameace isso, o congresso,
eleito sabe-se como, breca, a imprensa derruba, o PMDB sabota.
Há uma série de impasses para os quais não vejo saída, não vejo como
sair por dentro do jogo político tradicional, com as presentes regras
– vejo mais como sendo possível pelo lado do movimento social.
Este está desmobilizado; se não está, o que mais se ouve é que ele está.
Mas se não for por via do movimento social, vamos continuar vivendo nesse
paraíso subjuntivo, aquele em que um dia tudo vai ficar ótimo.
O Brasil é um país dominado politicamente por grandes proprietários
e grandes empreiteiros, que não só nunca fez sua reforma agrária,
como onde se diz que já não é mais preciso fazê-la.
Você acha que as coisas vão começar a mudar quando chegarem a um limite?
A crise econômica mundial vai provavelmente pegar o Brasil no contrapé
em algum momento próximo. Mas o que vai acontecer com certeza é que o
mundo todo vai passar por uma transição ecológica, climática e demográfica
muito intensa nos próximos 50 anos, com epidemias, fomes, secas, desastres,
guerras, invasões. Estamos vendo as condições climáticas mudarem muito
mais aceleradamente do que imaginávamos, e é grande a possibilidade de
catástrofes, de quebras de safras, de crises de alimentos. Por ora, hoje,
isso está até beneficiando o Brasil. Mas um dia a conta vai chegar.
Os climatologistas, os geofísicos, os biólogos e os ecólogos estão
profundamente pessimistas quanto ao ritmo, as causas e as consequências
da transformação das condições ambientais em que se desenvolve hoje
a vida da espécie. Porque haveria eu de estar otimista?
Penso que é preciso insistir que é possível ser feliz sem se deixar
hipnotizar por esse frenesi de consumo que a mídia nos impõe.
Não sou contra o crescimento econômico no Brasil, não sou idiota
a ponto de achar que tudo se resolveria distribuindo a grana do
Eike Batista entre os camponeses do semi-árido nordestino ou cortando
os subsídios aos clãs político-mafiosos que governam o país.
Não que isso não fosse uma boa ideia. Mas sou contra, isso sim,
o crescimento da “economia” mundial, e sou a favor de uma
redistribuição das taxas de crescimento. Sou também obviamente
a favor de que todos possam comprar uma geladeira, e,
por que não, uma televisão — mas sou a favor de que isso
envolva a máxima implementação das tecnologias solar e eólica.
E teria imenso prazer em parar de andar de carro se pudéssemos
trocar esse meio absurdo de transporte por soluções mais inteligentes.
E como você vê o jovem nesse contexto?
É muito difícil falar de uma geração à qual não se pertence.
Na década de 60 tínhamos ideias confusas mas ideais claros,
achávamos que podíamos mudar o mundo, e sabíamos que tipo de
mundo queríamos. Acho que, no geral, os horizontes utópicos
se retraíram enormemente.
Algum movimento recente no Brasil ou no mundo chamou sua atenção?
No Brasil, a aceleração da difusão do que podemos chamar de
cultura agro-sulista,
tanto à direita como à esquerda, pelo interior do país. Vejo isso como a
consumação do projeto de branqueamento da nacionalidade, esse modo muito
peculiar da elite dominante acertar suas contas com o próprio passado
(passado?) escravista.
Outra mudança importante foi a consolidação de uma cultura popular ligada
ao movimento evangélico. O evangelismo das igrejas universais do
reino de Deus e congêneres está evidentemente associado à religião
do consumo, aliás.
E como você vê o surgimento das redes sociais, nesse contexto?
Isso é uma das poucas coisas com que estou bastante otimista:
o relativo e progressivo enfraquecimento do controle total das
mídias por cinco ou seis grandes grupos. Esse enfraquecimento
está acontecendo com a proliferação das redes sociais,
que são a grande novidade na sociedade brasileira e que
estão contribuindo para fazer circular um tipo de informação
que não tinha trânsito na imprensa oficial, e permitindo formas
de mobilização antes impossíveis. Há movimentos inteiramente
produzidos dentro das redes sociais, como a marcha
contra a homofobia, o churrasco da “gente diferenciada”
em Higienópolis, os vários movimentos contra Belo Monte,
a mobilização pelas florestas. As redes são nossa saída de
emergência para a aliança mortal entre governo e mídia.
São um fator de desestabilização, no melhor sentido da palavra,
do arranjo de poder dominante. Se alguma grande mudança no
cenário político brasileiro vier a acontecer, creio que vai
passar por essa mobilização das redes.
Por isso se intensificam as tentativas de controlar essas redes
por parte dos poderes constituídos – isso no mundo inteiro.
Pelo controle ao acesso ou por instrumentos vergonhosos,
como o “projeto” brasileiro de banda larga, que começa pelo
reconhecimento de que o serviço será de baixa qualidade.
Uma decisão tecnológica e política antidemocrática e antipopular,
equivalente ao que se faz com a educação: impedir que a população
tenha acesso pleno à circulação cultural. Parece mesmo, às vezes,
que há uma conspiração para impedir que os brasileiros tenham uma
educação boa e acesso de qualidade à internet. Essas coisas vão
juntas e têm o mesmo efeito, que é o aumento da inteligência social,
algo que, pelo jeito, é preciso controlar com muito cuidado.
Você imagina um novo modelo político?
Um amigo que trabalhava no ministério do Meio Ambiente
na época de Marina Silva me criticava dizendo que essa
minha conversa de ficar longe do Estado era romântica e absurda,
que tínhamos que tomar o poder, sim. Eu respondia que, se tínhamos
de tomar o poder, era preciso saber manter o poder depois,
e era aí que a coisa pegava. Não tenho um desenho político para o Brasil,
não tenho a pretensão de saber o que é melhor para o povo brasileiro
em geral e como um todo. Só posso externar minhas preocupações e indignações,
e palpitar, de verdade, apenas ali onde me sinto seguro.
Penso, de qualquer forma, que se deve insistir na ideia de que o
Brasil tem – ou, a essa altura, teria – as condições ecológicas,
geográficas, culturais de desenvolver um novo estilo de civilização,
um que não seja uma cópia empobrecida do modelo americano e norte-europeu.
Poderíamos começar a experimentar, timidamente que fosse, algum tipo
de alternativa aos paradigmas tecno-econômicos desenvolvidos na Europa moderna.
Mas imagino que, se algum país vai acabar fazendo isso no mundo, será a China.
Verdade que os chineses têm 5000 anos de historia cultural praticamente
continua, e o que nós temos a oferecer são apenas 500 anos de
dominação europeia e uma triste historia de etnocídio, deliberado ou não.
Mesmo assim, é indesculpável a falta de inventividade da sociedade brasileira,
pelo menos das suas elite políticas e intelectuais, que perderam várias ocasiões
de se inspirarem nas soluções socioculturais que os povos brasileiros
historicamente ofereceram, e de assim articular as condições de uma
civilização brasileira minimamente diferente dos comerciais de TV.
Temos de mudar completamente, para começar, a relação secularmente
predatória da sociedade nacional com a natureza, com a base
físico-biológica da própria nacionalidade. E está na hora de
iniciarmos uma relação nova com o consumo, menos ansiosa e mais
realista diante da situação de crise atual. A felicidade tem muitos caminhos.
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