21 de junho de 2015

António Quadros como precursor dos estudos do sebastianismo na literatura brasileira



A excelência da obra imensa de António Quadros — com requinte de análise muito própria de intelectuais de rara inteligência — clarifica que a cultura portuguesa é do tipo universal cuja coesão sustenta-se pela aprendizagem de uma língua comum que permite a coexistência entre culturas de povos diversos e diferentes. Aprofunda e expande os conhecimentos sobre a matriz lusa e seus efeitos ecumênicos refletidos na geografia criada pela língua portuguesa e enfatiza que o contínuo mergulho na História de Portugal e dos seus Mitos promove o fortalecimento da nossa compreensão de Nação, também, missionária, pois alargada no contato com as fontes primordiais em que mito e história se tocam, sonho e realidade tomam a forma de símbolos do milenarismo, do messianismo e do profetismo.  
Assim sendo, detenho-me na obra Poesia e Filosofia do mito sebastianista[1] na qual encontro a voz de um António Quadros que salienta os princípios de uma cultura portuguesa original e autônoma, vincando as características específicas e inconfundíveis do sebastianismo ao projeto vital, quer dizer, ao teleologismo que nos irmana na mesma consciência da missão que ao homem cabe aceder e realizar neste mundo ainda essencialmente tomado pelo medo e pelo dramático fado da insignificação da existência. Temos, pois, de articular o projeto de um Novo Tempo que já foi pensado e em muito realizado por Quadros de modo que possamos, de fato, entrelaçar cultura e educação. Ora, estamos no difícil momento em que há um trabalho prévio a realizar antes que se possa falar em reforma: o de requerer o aparecimento de valores de uma cultura radicada na beleza, na fraternidade, na tolerância e no sentido de justiça, peculiaridades que subjazem ao mito sebastianista. 
Isto posto, destaco o Livro II, em específico, a Parte II[2], na qual o autor elenca um grupo de pesquisadores que se interessaram pelo tema sebastianista, agrupando, assim, um acervo bibliográfico de primeira linha que orienta estudos investigativos sobre o mito sebástico e as suas variações diacrônicas que, no entanto, não o deixaram “[...] perder algo de essencial que o distingue e o caracteriza.”[3]. Como a investigação é, na verdade, fundamental e, sem ela, é impossível radicar com profundeza qualquer ação formativa, considero que seja na recolha atenta de uma bibliografia que explana a estrutura, a psicologia, a filosofia, as controvérsias e os rituais de desencantamento do mito sebastianista e na análise crítica dos livros examinados por António Quadros — que observa como cada autor entendeu ou descreveu a fenomenologia deste mito — que o torna um dos precursores dos estudos sebastianistas na literatura brasileira. Foi esta maneira de explanação metódica, com riqueza de informação, que me instigou à leitura de textos poéticos que indicam ora o sentido psicológico, sociológico e ético ora um viés de subordinação ideológica ou política do sebastianismo.
Quadros bem apontou a ressignificação da portugalidade no mito sebástico ao ritmo do movimento e da tessitura de nossa identidade nacional configurada no ser-tão nordestino vocacionado para a “Ilha encantada, terra da promissão” — de onde se espraia a profundidade da paisagem humana, social e física do Brasil menino e de onde se alumia o Dom Sebastião da Liberdade como a unidade místico-espiritual de um povo pastoreio do Reino do Espírito Santo. Também, por meio de António Quadros redescobre-se e é possível fixar que a nossa literatura é exemplar, genuinamente entretecida do mito sebastianista que é reinventado, toma forma, se materializa poeticamente por intermédio dos mestres da palavra como: José Lins do Rego, Joaquim Cardozo, Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Guilherme de Almeida, Ribeiro Couto, João Cabral de Melo Neto, Ariano Suassuna, José Santiago Naud e Euclides da Cunha que inspirou Vargas Llosa a escrever a saga de Canudos em La Guerra del Fin del Mundo.
A propósito, Quadros defendeu a ideia de que foi a “aldeia sagrada” de Canudos um movimento resultante do inconsciente arcaico e popular pertencente à “[...] substância ideal, onírica, utópica e filosófico-religiosa que está na origem do mito do Encoberto, [...].”[4]. Não obstante a irreflexão do fanatismo, Canudos fez-se fenômeno singular e simbólico, uma espécie de ecumenismo fervoroso, ativo, que se indispunha com o tempo da trivialidade e do desespero metafísico.
Além do mais, existe uma irradiação constante, persistente e vasta da cultura portuguesa, em especial, do mito sebástico em certos textos de Cassiano Ricardo, Dora Ferreira da Silva, Sousândrade, Hilda Hilst e na voz de cancioneiros populares como Alceu Valença, Gilberto Gil, Milton Nascimento e no nordeste desvelado de um Patativa do Assaré ou de um Augusto Pessoa ou no cordel de João Lopes Freire. A propósito, este cordelista, ao reavivar a história de Carlos Magno e os doze pares de França, reconta que Carlos Magno foi coroado em Roma com o titulo de imperador do sacro Império romano e que foi o soberano que mais próximo ficou da realização do Quinto Império. Em várias regiões do Brasil esse sonho medieval ainda é manifestado nas Cavalhadas e Marujadas.
Há em nosso cenário literário um Encoberto que sempre regressa, mesmo que tenha passado o tempo histórico de vida possível do próprio Rei D. Sebastião. Todavia, já não se trata da volta desse monarca, mas, da ritualização do mito e, por conseguinte, do que ele significa e realiza culturalmente: uma ideia fundamental de força revolucionária como a que se apresenta na letra poética “Admirável gado novo”[5], de Zé Ramalho, na qual há referências veladas a D. Sebastião na medida em que esse mito incita, na imanência histórica (o hoc tempore está no in illo tempore), a realização coletiva de uma República democrática popular acercada por valores de liberdade de ser, de saber e de viver que se projetariam para todo o mundo ou mesmo no tocante à derrubada de relações humilhantes, sobretudo, no que concerne às ditaduras, aos governos totalitários.
É sob a perspetiva de recusa aos mandonismos locais que se desenhou a figura de D. Sebastião, a bem dizer, o destino da vida, de modo especial à vida humana e, simultaneamente, o transcendente e o imanente, o futuro do passado mítico e sua presentificação em uma poesia de Ferreira Gullar[6] que conta a lenda da Praia dos Lençóis no Maranhão.

Diz a lenda que na praia
dos Lençóis no Maranhão
há um touro negro encantado
e que esse touro é Dom Sebastião.
Dizem que, se a noite é feia,
qualquer um pode escutar
o touro a correr na areia
até se perder no mar
onde vive num palácio
feito de seda e de ouro.
Mas todo encanto se acaba
se alguém enfrentar o touro.
E se alguém matar o touro
o ouro se torna pão:
Nunca mais haverá fome
nas terras do Maranhão.
E voltará a ser rei
o rei Dom Sebastião.
Isso é que diz a lenda.
Mas eu digo mais:
Se o povo matar o touro,
a encantação se desfaz.
Mas não é o rei, é o povo
que afinal se desencanta.
Não é o rei, é o povo
que se liberta e levanta
como seu próprio senhor:
Que o povo é o rei encantado
no touro que ele inventou.

Atento que, de um lado, há o tempo fáctico e histórico, do outro, o tempo mítico das origens, tempo trans-histórico e metafísico que, no seu horizonte ilimitado e inexaurível, abarca e transcende o horizonte limitado e perecível dos acontecimentos. Ou seja, ser o que D. Sebastião simboliza em termos de esperança, para que, em tempo certo, ele possa despertar na materialidade íntima e mundana simultaneamente. Não por acaso ele retorna ou refunda-se em todos os sujeitos; o importante é ter o povo chegado, no imaginário poético de Ferreira Gullar, à ideia de que é preciso refundar em cada indivíduo o Espírito a fim de que a reforma se anuncie: novo projeto de vida político-social e econômico.
Há, também, uma vigência do sebastianismo em Caetano Veloso que ressaltou, na conferência proferida no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1993, que o livro Mensagem, de Fernando Pessoa, a ele revelou o tema do mito sebástico. Decerto, ao compreender o significado desse mito português, pôde confessar, no livro Verdade Tropical[7], que sua obra poético musical tem marcas da herança sebastianista. Nesta informação, pode estar, por exemplo, a composição “Bahia, minha preta”[8] que abordo como um texto para ser lido como um poema que mostra a cristalização do mito.

Bahia minha preta
Como será
Se tua seta acerta o caminho e chega lá?
E a curva linha reta
Se ultrapassar
Esse negro azul que te mura,
O mar, o mar?
Cozinha esse cântico
Comprar o equipamento
E saber usar
Vender o talento e saber cobrar, lucrar
Insiste no que é lindo
E o mundo verá
Tu voltares rindo ao lugar que é teu globo azul
Rainha do atlântico sul
         E ô Bahia, fonte mítica encantada
E ô expande teu axé, não esconde nada
E ô teu canto de alegria ecoa longe, tempo e espaço
E ô rainha do atlântico
Te chamo de senhora
Opô Afonjá
Eros, dona Lina, Agostinho e Edgar
Te chamo menininha do cantoise
Candolina, Marta, Didi, Dodô e Osmar
Na linha romântico
Teu novo mundo
O mundo conhecerá
E o que está escondido no fundo emergirá
A voz mediterrânica e florestal
Lança muito além a civilização ora em tom boreal
Rainha do atlântico austral
E ô... Bahia, minha preta,
Como será?

De modo breve, menciono que neste poema, além da presença de nomes próprios reais, concretos e históricos referentes à Bahia dos anos de 1950 que revelam os significados ideológicos de uma época próspera, há evidências de que Bahia se torna uma entidade geradora de sentidos ou a fonte soberana, congregando e sintetizando, em nível textual, uma linguagem que pretende presentificar, presencializando, a figuração imagética do sebastianismo em versos expressivos.
“Bahia, minha preta” é uma poesia indicativa de certo sebastianismo a haver: o resgate de um passado mítico, o revigoramento espiritual, a revaloriza de relações político-sociais, a evidência da ancestralidade africana e a constituição de uma comunidade que se assuma em sua relativa diferença que funde a singular baianidade do Brasil, genuína em sua mistura de raças — miscigenação e ecumenismo. Neste sentido, a cidade da Bahia pode representar a concretização — a realização possível e real — da mítica Ilha Brasil cuja remissão é realizada de maneira explícita: “Rainha do atlântico sul”, “Rainha do atlântico austral”. A Ilha Brasil foi criadora de expetativas dos projetos de descobrimentos e sustenta, em simultâneo, a revivescência do mito sebastianista (no que tange aos valores culturais encobertos em terras brasileiras) e a edificação do Reino do Espírito Santo (que manteria as relações de paz sem as quais se não pode pensar em civilização duradoura).
Da análise dos poemas citados, diz-se que os sujeitos líricos — ou da lírica (lira) cuja origem guarda fortes traços com a música — não aguardam impassíveis D. Sebastião, porque este retorna primeiro na subjetividade dos poetas para expressar o futuro, só depois, na exteriorização da subjetividade de Zé Ramalho, Ferreira Gullar e Caetano Veloso, há o despertar, no ambiente coletivo, do passado mítico que pode motivar a autodeterminação das pessoas e de um povo. Daí a dizer que D. Sebastião é figura de plenitude ontológica que representa contrapontos nos quais as antinomias são superadas.
O Reino do Espírito Santo torna-se, também, um fenômeno literário, como é o caso do poema “Festa dos Tabuleiros em Tomar”, inserido no livro Poemas de Viagens, constante da obra Poesia completa[9] cuja autora é Cecília Meireles. Eis o poema:

As canéforas de Tomar
levam cestos como coroas,
como jardins, castelos, torres,
como nuvens armadas no ar.

Estas gregas do Ribatejo,
nesta procissão, devagar,
não são apenas de Tomar:
são as canéforas dos tempos...

Para onde vão, com o mesmo andar
de milenares portadoras,
levando pão, levando flores,
as canéforas de Tomar?

Para que sol, para que terra,
para que ritos, a que altar,
as canéforas de Tomar
os primores do mundo levam?


O pombo cristão vem pousar
no alto dos cestos: pães e rosas
ides dar aos presos e aos pobres,
ó canéforas de Tomar?

Este poema é uma mostra da cristalização e persistência da tradição místico-religiosa do povo português, sendo uma metonímia da Festa dos Tabuleiros, na cidade de Tomar, o que torna possível uma relação simbólica de existência externa ao texto. Quanto à poesia de “Festa dos Tabuleiros em Tomar”, entendo que seja a metáfora de um novo tempo de bonança, equivalente ao banquete geral, todo ele de comidas gratuitas e do qual participam todos os que o queiram fazer a distribuição de iguarias e a devoção ao saber amar, servir e rezar.
O mito do Reino do Espírito Santo, equivalente ao mito da Ilha Brasil, é “o Princípio reinante anunciado, de cuja matéria lendária serão feitos os mitos portugueses do Quinto Império e do Encoberto.”[10]. Diria, inclusive, que é precisamente uma esperança que irmana os homens para além do mito e a sua assimilação por poetas, cancioneiros e cordelistas mostra a perspicaz observação sobre o modo de ser português declarado, metonimicamente, em poesia, em prosa, em canção, pois, adotando aquilo que o Encoberto representa enquanto futura-Idade, faz ressignificar a parusia com teor de fraternidade ecumênica, humanista, concebida com base em questões fundamentais — o da liberdade de expressão, econômica e político-social.
Então, o valor do sebastianismo não adentrou apenas a nossa literatura, mas dinamiza o cenário cultural brasileiro nas Cavalhadas, nas lendas de D. Sebastião nas figuras de António Conselheiro, Padre Cícero, Tiradentes e Zumbi dos Palmares, no Cangaço, nos ritos da Umbanda e do Candomblé, das Igrejas e das Irmandades, dos Maracatus e das Congadas e até mesmo nos desfiles das Escolas de Samba e nos movimentos comunitários. Isto ocorre pelo fato do Brasil ser um país de paradoxos, de sincretismos.
Estas interpretações só foram possíveis porque tentei, na medida do possível, ressaltar, a partir de António Quadros, o adensamento da cultura portuguesa entre nós e, por extensão, a relevante vocação atlântica de um povo e o sebastianismo como sendo a “[...] alegada chave para a resolução de todos os problemas imediatos do Império português.”[11]. É lícito mencionar que a viabilidade do mito sebastianista depende de sermos sujeitos capazes de, pela cotidiana tarefa, determinar a revolução espiritual que nos dignifique a existência. Portanto, vamos a isso. Viva o Rei. “Mais Rei que nunca! Rei Santo... Rei... O Rei de Sempre!”[12]. Por fim, invento serem meus os versos do poeta Augusto de Campos, autor do livro Verso, Reverso, Contra Verso para fazer uma alusão desde logo a intemporalidade mítica a que acedeu D. Sebastião:

Eu defenderei até a morte o
novo por causa do antigo e até a
vida o antigo por causa do novo.
O antigo que foi novo é
tão novo como o mais novo.



por Lúcia Helena Alves de Sá






[1] António QUADOS, Poesia e filosofia do Mito Sebastianista, (2ª ed.), Lisboa, Guimarães Editores, 2001, pp. 411.
[2] António QUADROS, “O sebastianismo brasileiro”, in António QUADOS, Poesia e filosofia do Mito Sebastianista, (2ª ed.), Lisboa, Guimarães Editores, 2001, pp. 315-346.
[3] António QUADROS, “O sebastianismo brasileiro”, in António QUADOS, Poesia e filosofia do Mito Sebastianista, (2ª ed.), Lisboa, Guimarães Editores, 2001, p. 191.
[4] António QUADROS, “O sebastianismo brasileiro”, in António QUADOS, Poesia e filosofia do Mito Sebastianista, (2ª ed.), Lisboa, Guimarães Editores, 2001, p. 221.
[5] http://letras.mus.br/ze-ramalho/49361/ (03 de setembro de 2013).
[6] Ferreira GULLAR, O rei que mora no mar, São Paulo, Global, 2001, 16 p.
[7] Caetano VELOSO, Verdade tropical, São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pp. 93, 300, 338.
[8] CD o sorriso do gato de Alice (sic), Gal Costa, BMG Ariola, Ano 1994.
[9] Cecília MEIRELES, “Festas dos Tabuleiros em Tomar”, in Obras Completa, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1993, pp. 1307-1308.

[10] António QUADROS. Portugal - Razão e Mistério: O projecto áureo ou o Império do Espírito Santo, Lisboa, Guimarães, 1999, p. 91.
[11], Manuel J. GANDRA, Joaquim de Fiore, Joaquimismo e Esperança Sebástica, Lisboa, Fundação Lusíada, 1999, p. 125.
[12] Joaquim DOMINGUES, De Ourique ao Quinto Império, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda (Temas Portugueses), 2002, p. 311.

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