A excelência da obra
imensa de António Quadros — com requinte de análise muito própria de
intelectuais de rara inteligência — clarifica que a cultura portuguesa é do
tipo universal cuja coesão sustenta-se pela aprendizagem de uma língua comum
que permite a coexistência entre culturas de povos diversos e diferentes. Aprofunda
e expande os conhecimentos sobre a matriz lusa e seus efeitos ecumênicos
refletidos na geografia criada pela língua portuguesa e enfatiza que o contínuo
mergulho na História de Portugal e dos seus Mitos promove o fortalecimento da
nossa compreensão de Nação, também, missionária, pois alargada no contato com
as fontes primordiais em que mito e história se
tocam, sonho e realidade tomam a forma de símbolos do milenarismo, do
messianismo e do profetismo.
Assim sendo,
detenho-me na obra Poesia e Filosofia do
mito sebastianista[1]
na qual encontro a voz de um António Quadros que salienta os princípios de uma
cultura portuguesa original e autônoma, vincando as características específicas
e inconfundíveis do sebastianismo ao projeto vital, quer dizer, ao teleologismo
que nos irmana na mesma consciência da missão
que ao homem cabe aceder e realizar neste mundo ainda essencialmente tomado
pelo medo e pelo dramático fado da insignificação da existência. Temos, pois,
de articular o projeto de um Novo
Tempo que já foi pensado e em muito realizado por Quadros de modo que possamos,
de fato, entrelaçar cultura e educação. Ora, estamos no difícil momento em que
há um trabalho prévio a realizar antes que se possa falar em reforma: o de
requerer o aparecimento de valores de uma cultura radicada na beleza, na fraternidade,
na tolerância e no sentido de justiça, peculiaridades que subjazem ao mito
sebastianista.
Isto posto, destaco o Livro
II, em específico, a Parte II[2],
na qual o autor elenca um grupo de pesquisadores que se interessaram pelo tema
sebastianista, agrupando, assim, um acervo bibliográfico de primeira linha que
orienta estudos investigativos sobre o mito sebástico e as suas variações
diacrônicas que, no entanto, não o deixaram “[...] perder algo de essencial que
o distingue e o caracteriza.”[3].
Como a investigação é, na verdade, fundamental e, sem ela, é impossível radicar
com profundeza qualquer ação formativa, considero que seja na recolha atenta de
uma bibliografia que explana a estrutura, a psicologia, a filosofia, as
controvérsias e os rituais de desencantamento do mito sebastianista e na
análise crítica dos livros examinados por António Quadros — que observa como
cada autor entendeu ou descreveu a fenomenologia deste mito — que o torna um dos
precursores dos estudos sebastianistas na
literatura brasileira. Foi esta maneira de explanação metódica, com riqueza de
informação, que me instigou à leitura de textos poéticos que indicam ora o
sentido psicológico, sociológico e ético ora um viés de subordinação ideológica
ou política do sebastianismo.
Quadros bem apontou a
ressignificação da portugalidade no mito sebástico ao ritmo do movimento e da
tessitura de nossa identidade nacional configurada no ser-tão nordestino vocacionado para a “Ilha encantada, terra da
promissão” — de onde se espraia a profundidade da paisagem humana, social e
física do Brasil menino e de onde se
alumia o Dom Sebastião da Liberdade
como a unidade místico-espiritual de um povo pastoreio do Reino do Espírito
Santo. Também, por meio de António Quadros redescobre-se e é possível fixar que
a nossa literatura é exemplar, genuinamente entretecida do mito sebastianista
que é reinventado, toma forma, se materializa poeticamente por intermédio dos mestres
da palavra como: José Lins do Rego, Joaquim Cardozo, Manuel Bandeira, Jorge de
Lima, Guilherme de Almeida, Ribeiro Couto, João Cabral de Melo Neto, Ariano
Suassuna, José Santiago Naud e Euclides da Cunha que inspirou Vargas Llosa a
escrever a saga de Canudos em La Guerra
del Fin del Mundo.
A
propósito, Quadros defendeu a ideia de que foi a “aldeia sagrada”
de Canudos um movimento resultante do inconsciente arcaico e popular
pertencente à “[...] substância ideal, onírica, utópica e filosófico-religiosa
que está na origem do mito do Encoberto, [...].”[4].
Não obstante a irreflexão do fanatismo, Canudos fez-se fenômeno singular e
simbólico, uma espécie de ecumenismo fervoroso, ativo, que se indispunha com o
tempo da trivialidade e do desespero metafísico.
Além
do mais, existe uma irradiação constante, persistente e vasta da cultura
portuguesa, em especial, do mito sebástico em certos textos de Cassiano
Ricardo, Dora Ferreira da Silva, Sousândrade, Hilda Hilst e na voz de
cancioneiros populares como Alceu Valença, Gilberto Gil, Milton Nascimento e no
nordeste desvelado de um Patativa do Assaré ou de um Augusto Pessoa ou no
cordel de João Lopes Freire. A propósito, este cordelista, ao reavivar a
história de Carlos Magno e os doze pares de França, reconta que Carlos Magno
foi coroado em Roma com o titulo de imperador do sacro Império romano e que foi
o soberano que mais próximo ficou da realização do Quinto Império. Em várias
regiões do Brasil esse sonho medieval ainda é manifestado nas Cavalhadas e
Marujadas.
Há em nosso cenário literário um Encoberto
que sempre regressa, mesmo que tenha passado o tempo histórico de vida possível
do próprio Rei D. Sebastião. Todavia, já não se trata da volta desse monarca,
mas, da ritualização do mito e, por conseguinte, do que ele significa e realiza
culturalmente: uma ideia fundamental de força revolucionária como a que se
apresenta na letra poética “Admirável gado novo”[5],
de Zé Ramalho, na qual há referências veladas
a D. Sebastião na medida em que esse mito incita, na
imanência histórica (o hoc tempore está no in illo tempore), a realização
coletiva de uma República democrática popular acercada por valores de liberdade
de ser, de saber e de viver que se projetariam para todo o mundo ou mesmo no
tocante à derrubada de relações humilhantes, sobretudo, no que concerne às
ditaduras, aos governos totalitários.
É sob a perspetiva de recusa aos mandonismos locais que se desenhou a
figura de D. Sebastião, a bem dizer, o destino da vida, de modo especial à vida
humana e, simultaneamente, o transcendente e o imanente, o futuro do passado
mítico e sua presentificação em uma poesia de Ferreira Gullar[6]
que conta a lenda da Praia dos Lençóis no Maranhão.
Diz
a lenda que na praia
dos
Lençóis no Maranhão
há
um touro negro encantado
e
que esse touro é Dom Sebastião.
Dizem
que, se a noite é feia,
qualquer
um pode escutar
o
touro a correr na areia
até
se perder no mar
onde
vive num palácio
feito
de seda e de ouro.
Mas
todo encanto se acaba
se
alguém enfrentar o touro.
E
se alguém matar o touro
o
ouro se torna pão:
Nunca
mais haverá fome
nas
terras do Maranhão.
E
voltará a ser rei
o
rei Dom Sebastião.
Isso
é que diz a lenda.
Mas
eu digo mais:
Se
o povo matar o touro,
a
encantação se desfaz.
Mas
não é o rei, é o povo
que
afinal se desencanta.
Não
é o rei, é o povo
que
se liberta e levanta
como
seu próprio senhor:
Que
o povo é o rei encantado
no
touro que ele inventou.
Atento que, de um lado, há o
tempo fáctico e histórico, do outro, o tempo mítico das origens, tempo
trans-histórico e metafísico que, no seu horizonte ilimitado e inexaurível,
abarca e transcende o horizonte limitado e perecível dos acontecimentos. Ou
seja, ser o que D. Sebastião simboliza em termos de esperança, para que, em
tempo certo, ele possa despertar na materialidade íntima e mundana
simultaneamente. Não por acaso ele retorna ou refunda-se em todos os sujeitos;
o importante é ter o povo chegado, no imaginário poético de Ferreira Gullar, à
ideia de que é preciso refundar em cada indivíduo o Espírito a fim de que a
reforma se anuncie: novo projeto de vida político-social e econômico.
Há, também, uma vigência do sebastianismo em
Caetano Veloso que ressaltou, na conferência proferida no Museu de Arte Moderna
do Rio de Janeiro, em 1993, que o livro Mensagem,
de Fernando Pessoa, a ele revelou o tema do mito sebástico. Decerto, ao
compreender o significado desse mito português, pôde confessar, no livro Verdade
Tropical[7],
que sua obra poético musical tem marcas da herança sebastianista. Nesta
informação, pode estar, por exemplo, a composição “Bahia, minha preta”[8]
que abordo como um texto para ser lido como um poema
que mostra a cristalização do mito.
Bahia minha preta
Como será
Se tua seta acerta o caminho e chega lá?
E a curva linha reta
Se ultrapassar
Esse negro azul que te mura,
O mar, o mar?
Cozinha esse cântico
Comprar o equipamento
E saber usar
Vender o talento e saber cobrar, lucrar
Insiste no que é lindo
E o mundo verá
Tu voltares rindo ao lugar que é teu globo azul
Rainha do atlântico sul
E ô Bahia, fonte mítica encantada
E ô expande teu axé, não esconde nada
E ô teu canto de alegria ecoa longe,
tempo e espaço
E ô rainha do atlântico
Te chamo de senhora
Opô Afonjá
Eros, dona Lina, Agostinho e Edgar
Te chamo menininha do cantoise
Candolina, Marta, Didi, Dodô e Osmar
Na linha romântico
Teu novo mundo
O mundo conhecerá
E o que está escondido no fundo
emergirá
A voz mediterrânica e florestal
Lança muito além a civilização ora em
tom boreal
Rainha do atlântico austral
E ô... Bahia, minha preta,
Como será?
De modo breve, menciono que neste poema, além
da presença de nomes próprios reais, concretos e históricos referentes à Bahia
dos anos de 1950 que revelam os significados ideológicos de uma época próspera,
há evidências de que Bahia se
torna uma entidade geradora de sentidos ou a fonte soberana,
congregando e sintetizando, em nível textual, uma linguagem que pretende
presentificar, presencializando, a figuração imagética do sebastianismo em
versos expressivos.
“Bahia, minha preta” é uma poesia indicativa de
certo sebastianismo a haver: o resgate de um passado mítico, o revigoramento espiritual, a revaloriza
de relações político-sociais, a evidência da ancestralidade africana e a constituição de uma
comunidade que se assuma em sua relativa diferença que funde a singular
baianidade do Brasil, genuína em sua mistura de raças — miscigenação e ecumenismo. Neste sentido, a cidade da Bahia pode representar
a concretização — a realização possível e real — da mítica Ilha Brasil cuja remissão é realizada de maneira explícita: “Rainha do atlântico sul”, “Rainha do
atlântico austral”. A Ilha Brasil foi
criadora de expetativas dos projetos de descobrimentos e sustenta, em
simultâneo, a revivescência do mito sebastianista (no que tange aos valores culturais
encobertos em terras brasileiras) e a
edificação do Reino do Espírito Santo (que manteria as relações de paz sem as
quais se não pode pensar em civilização duradoura).
Da análise dos poemas
citados, diz-se que os sujeitos líricos — ou da lírica (lira) cuja origem guarda fortes
traços com a música — não aguardam impassíveis D. Sebastião, porque este
retorna primeiro na subjetividade dos poetas para expressar o futuro, só
depois, na exteriorização da subjetividade de Zé Ramalho, Ferreira Gullar e
Caetano Veloso, há o despertar, no ambiente coletivo, do passado mítico que
pode motivar a autodeterminação das
pessoas e de um povo. Daí a dizer que D.
Sebastião é figura de plenitude ontológica que representa contrapontos nos quais as antinomias são superadas.
O Reino do Espírito Santo torna-se, também, um fenômeno literário, como é
o caso do poema “Festa dos Tabuleiros em Tomar”, inserido no livro Poemas de Viagens, constante da obra Poesia
completa[9]
cuja autora é Cecília Meireles. Eis o poema:
As
canéforas de Tomar
levam
cestos como coroas,
como
jardins, castelos, torres,
como
nuvens armadas no ar.
Estas
gregas do Ribatejo,
nesta
procissão, devagar,
não
são apenas de Tomar:
são
as canéforas dos tempos...
Para
onde vão, com o mesmo andar
de
milenares portadoras,
levando
pão, levando flores,
as
canéforas de Tomar?
Para
que sol, para que terra,
para
que ritos, a que altar,
as
canéforas de Tomar
os
primores do mundo levam?
O
pombo cristão vem pousar
no
alto dos cestos: pães e rosas
ides
dar aos presos e aos pobres,
ó canéforas de Tomar?
Este poema é uma mostra da cristalização e persistência da tradição
místico-religiosa do povo português, sendo uma metonímia da Festa dos
Tabuleiros, na cidade de Tomar, o que torna possível uma relação simbólica de
existência externa ao texto. Quanto à poesia de “Festa dos Tabuleiros em
Tomar”, entendo que seja a metáfora de um novo tempo de bonança, equivalente ao
banquete geral, todo ele de comidas gratuitas e do qual participam todos os que
o queiram fazer a distribuição de iguarias e a devoção ao saber amar, servir e
rezar.
O mito do Reino do Espírito Santo, equivalente ao mito da Ilha Brasil, é “o Princípio reinante
anunciado, de cuja matéria lendária serão feitos os mitos portugueses do Quinto
Império e do Encoberto.”[10].
Diria, inclusive, que é precisamente uma
esperança que irmana os homens para além do mito e a sua assimilação por
poetas, cancioneiros e cordelistas mostra a perspicaz observação sobre o modo de ser português declarado,
metonimicamente, em poesia, em prosa, em canção, pois, adotando aquilo que o Encoberto representa enquanto futura-Idade, faz ressignificar a
parusia com teor de fraternidade ecumênica,
humanista, concebida com base em questões fundamentais — o da liberdade de
expressão, econômica e político-social.
Então, o valor do sebastianismo não adentrou
apenas a nossa literatura, mas dinamiza o cenário cultural brasileiro nas
Cavalhadas, nas lendas de D. Sebastião nas figuras de António Conselheiro, Padre
Cícero, Tiradentes e Zumbi dos Palmares, no Cangaço, nos ritos da Umbanda e do Candomblé,
das Igrejas e das Irmandades, dos Maracatus e das Congadas e até mesmo nos
desfiles das Escolas de Samba e nos movimentos comunitários. Isto ocorre pelo
fato do Brasil ser um país de paradoxos, de sincretismos.
Estas interpretações só foram
possíveis porque tentei, na medida do possível, ressaltar, a partir de António
Quadros, o adensamento da cultura portuguesa entre nós e, por extensão, a
relevante vocação atlântica de um povo e o sebastianismo como sendo a “[...]
alegada chave para a resolução de todos os problemas imediatos do Império
português.”[11]. É lícito mencionar que a
viabilidade do mito sebastianista depende de sermos sujeitos capazes de, pela
cotidiana tarefa, determinar a revolução espiritual que nos dignifique a
existência. Portanto, vamos a isso. Viva o Rei. “Mais Rei que nunca! Rei
Santo... Rei... O Rei de Sempre!”[12].
Por fim, invento serem meus os versos do poeta Augusto de Campos, autor do
livro Verso, Reverso, Contra Verso
para fazer uma alusão desde logo a intemporalidade mítica a que acedeu D.
Sebastião:
Eu
defenderei até a morte o
novo por
causa do antigo e até a
vida o
antigo por causa do novo.
O antigo
que foi novo é
tão novo
como o mais novo.
por Lúcia Helena Alves de Sá
[1] António QUADOS,
Poesia e filosofia do Mito Sebastianista,
(2ª ed.), Lisboa, Guimarães Editores, 2001, pp. 411.
[2]
António QUADROS, “O sebastianismo brasileiro”, in António QUADOS, Poesia e filosofia do Mito Sebastianista,
(2ª ed.), Lisboa, Guimarães Editores, 2001, pp. 315-346.
[3] António
QUADROS, “O sebastianismo brasileiro”, in António QUADOS, Poesia e filosofia do Mito Sebastianista, (2ª ed.), Lisboa,
Guimarães Editores, 2001, p. 191.
[4] António
QUADROS, “O sebastianismo brasileiro”, in António QUADOS, Poesia e filosofia do Mito Sebastianista, (2ª ed.), Lisboa,
Guimarães Editores, 2001, p. 221.
[6] Ferreira
GULLAR, O rei que mora no mar, São
Paulo, Global, 2001, 16 p.
[7]
Caetano VELOSO, Verdade tropical, São
Paulo, Companhia das Letras, 1997, pp. 93, 300, 338.
[8] CD
o sorriso do gato de Alice (sic), Gal Costa, BMG Ariola, Ano 1994.
[9] Cecília
MEIRELES, “Festas dos Tabuleiros em Tomar”, in Obras Completa, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1993, pp. 1307-1308.
[10] António QUADROS. Portugal - Razão e Mistério: O projecto
áureo ou o Império do Espírito Santo, Lisboa, Guimarães, 1999, p. 91.
[11],
Manuel J. GANDRA, Joaquim de Fiore,
Joaquimismo e Esperança Sebástica, Lisboa, Fundação Lusíada, 1999, p. 125.
[12] Joaquim
DOMINGUES, De Ourique ao Quinto Império,
Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda (Temas Portugueses), 2002, p. 311.
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