1. Comecemos por falar sobre o autor desta obra colossal (O Estranhíssimo Colosso.
Uma Biografia de Agostinho da Silva, Quetzal, 2015, 735 pp.): António Cândido Franco.
Não tanto para salientar a sua já vasta obra – recordamos aqui alguns títulos:
Memória de Inês de Castro (1990), Eleonor na Serra de Pascoaes (1992),
Vida de Sebastião, Rei de Portugal(1993), A literatura de Teixeira de Pascoaes (2000),
Os Descobrimentos Portugueses e a Demanda do Preste João (2001),
A Rainha Morta e o Rei Saudade (2003), Viagem a Pascoaes (2006),
A saga do Rei Menino (2007), A herança de D. Carlos (2008),
Vida Ignorada de Leonor Teles (2009), Os pecados da Rainha Santa Isabel (2010)
e Notas para a Compreensão do Surrealismo em Portugal (2013) –,
ou sobre a sua carreira académica na Universidade de Évora – onde é professor
há já bastantes anos –, mas sobre o seu carácter, mais precisamente, sobre
um traço do seu carácter que valorizamos em particular.
Ao contrário do que é hábito – sobretudo, arriscamos dizê-lo, em Portugal –,
António Cândido Franco lida bem com o diferente, ou seja, consegue dialogar
com quem tem posições muito diversas das suas, conseguindo até, nalguns casos,
admirar essas pessoas, sem que isso implique qualquer abdicação da sua posição
de partida. Dou um exemplo recente: a recensão que António Cândido Franco
publicou no nº 15 da Revista NOVA ÁGUIA (1º semestre de 2015) da obra
O Puto – Autópsia dos Ventos da Liberdade, de Ricardo Saavedra. Esta obra,
para quem não o tenha presente, é ela própria uma biografia, no caso de alguém
que, nas palavras de António Cândido Franco, “viveu o lado errado e em geral
esquecido da Revolução dos Cravos” – acrescentando: “Este homem não viveu,
como tantos de nós, o 25 de Abril mas apenas a descolonização. Em vez de alegria,
sentiu medo; em lugar de euforia, a depressão; em vez duma libertação,
o pânico de perder casa e vida. É de pasmar que o herói deste livro, já
encarcerado, no feriado do 25 de Abril traje de luto pela pátria morta?
Não cremos. Está na lógica do livro e da personagem.”.
Não conhecemos muitas pessoas que, comungando o mesmo ideário de
António Cândido Franco, tenham igual grandeza de carácter para escreverem
o que acabei de citar – de imediato, lembro-me de Raul Proença, que salienta
a “belíssima alma” de Teixeira de Pascoaes no mesmo gesto em que assume a
dissidência em relação à “Renascença Portuguesa”. A regra entre nós é a contrária:
as divergências acabam (quase) sempre em desqualificações: se alguém não
concorda connosco é porque, em última instância, padece de alguma falha
de carácter ou de inteligência. É bem mais complicado, com efeito, admitir,
para mais de forma expressa, que os nossos adversários – ou mesmo os
nossos inimigos – sejam pessoas no mínimo tão bem-intencionadas quanto nós,
por mais que, objectivamente, consideremos que estejam do “lado errado”.
Daí, de resto, o erro absoluto daqueles que reduzem os diferendos ideológicos
a divergências éticas – da extrema-esquerda à extrema-direita, passando decerto
por todas as variantes do centro, há pessoas bem-intencionadas. A diferença não está pois aí.
2. Mas regressemos a este colossal livro, não tanto pelo seu tamanho
(mais de setecentas páginas), como, sobretudo, pela sua ousadia: fazer uma
Biografia de Agostinho da Silva. Sabemos bem que esta era uma tarefa tão
desejada por muitos quanto ciclópica, dados os muitos “buracos negros”
que existiam na vida de Agostinho da Silva. António Cândido Franco, desde
já o dizemos, não traz à luz todos esses “buracos negros”. Mas conseguiu
realizar uma obra que merece, na íntegra, esse subtítulo:
“Uma Biografia de Agostinho da Silva”. E sublinhamos aqui o artigo,
que parece ter escapado a alguns comentadores mais apressados:
trata-se aqui de “Uma Biografia de Agostinho da Silva”, não de
“A Biografia de Agostinho da Silva”.
Isso é desde logo relevante porque toda esta Biografia se desenvolve
a partir de uma perspectiva: a de António Cândido Franco, necessariamente.
Assim, tal como o próprio Agostinho da Silva nos deu, numa das suas
mais conhecidas obras, “Um Fernando Pessoa” e não “O Fernando Pessoa”,
assim também António Cândido Franco” nos dá “Um Agostinho da Silva” e não
“O Agostinho da Silva”. Tanto mais porque, ao longo da obra,
António Cândido Franco parece-nos enaltecer mais as dimensões
da vida e obra de Agostinho da Silva em que mais se reconhece –
e ao dizermos isto não estamos a fazer, como alguns poderão pensar,
um juízo negativo.
Temos aqui bem presente a lição daquele cuja obra, a par de Agostinho da Silva,
mais estudámos no âmbito do pensamento português contemporâneo
– falamos de José Marinho. Escreveu ele que “quando expomos um
pensador devemos dar toda a força ao seu pensamento”
– defendendo ainda, citando Schopenhauer, “tal atitude é, em relação a eles,
a mais adequada e é, para o nosso próprio pensamento, a mais proveitosa”.
Ou seja: António Cândido Franco, ao ter – como escrevemos – enaltecido
mais as dimensões da vida e obra de Agostinho da Silva em que mais se
reconhece, procurou dar (e bem) “toda a força ao pensamento” agostiniano.
Nós, decerto, faríamos diferente – mas com o mesmo objectivo. Também nós,
com efeito, tendemos a enaltecer mais as dimensões da vida e obra de
Agostinho da Silva em que mais nos reconhecemos.
O retrato que António Cândido Franco nos dá de Agostinho da Silva é pois
um seu retrato, mas é, inequivocamente, um retrato verdadeiro. Verdadeiro
e generoso: mesmo que algumas passagens possam não agradar a alguns
gostos mais conservadores (e isso chegou a acontecer connosco –
não temos qualquer complexo em assumi-lo), António Cândido Franco
procurou sempre aquele que seria, na sua perspectiva, o melhor ângulo,
o ângulo mais favorável ao retratado, mesmo quando não escamoteia as
dimensões mais chãs de qualquer existência humana. Em todas essas dimensões,
foi, com efeito, Agostinho da Silva um homem maximamente viril,
maximamente enérgico. Um colosso, numa palavra. Só acrescentaríamos
“estranhíssimo” porque, nos nossos tempos, homens assim são cada vez
mais raros. Verdadeiramente, Agostinho da Silva não foi um homem do nosso tempo.
3. Esse é, de resto, na nossa perspectiva, o maior paradoxo da
existência de Agostinho da Silva – como é que alguém que não foi
verdadeiramente do nosso tempo conseguiu prever, melhor do que ninguém,
o Portugal pós-imperial. Antecipando a previsível catástrofe, tentou, ainda nos
anos sessenta, avançar para uma verdadeira Comunidade Lusófona.
O Estado Novo não lhe deu ouvidos. A Revolução em curso também não:
“…a ideia geral talvez fosse, e eu próprio a defendia e procurei no princípio
da guerra em Angola, junto de autoridades portuguesas, por exemplo de um
embaixador no Rio, pôr-lhes essa ideia na cabeça... fazer das colónias e de
Portugal uma comunidade de língua portuguesa. Ideia que expus a
Franco Nogueira quando vim a Portugal, em 1962, convidado pelo
Governo português para discutir o estatuto do
Centro de Estudos Portugueses em Brasília. O ministro Franco Nogueira,
ministro dos Estrangeiros nessa altura, recebeu-me e pudemos
conversar com toda a franqueza, perguntando-me ele se eu achava
que a ideia de uma comunidade luso-brasileira seria bem recebida
no Brasil, respondi-lhe que não. Exactamente por causa da atitude
que Portugal estava a tomar com as colónias, com Angola naquela ocasião,
o Brasil de nenhuma maneira ia aceitar isso, pois recordava-se muito bem
que tinha sido colónia. A meu ver, Portugal tratou o Brasil muito bem
quando foi colónia e se não tivessem sido os portugueses, o Brasil não
se teria constituído. Mas o Brasil muitas vezes achava que os portugueses
tinham tido defeitos na colonização — a meus olhos esses defeitos não
existiram, embora houvesse muita coisa individual de tipo geralmente
conotado com a colonização rapinante dos países. Mas não me parecia
que naquela altura aceitassem uma coisa dessas. Mas havia algo que
achava que aceitavam e que tomava a liberdade de expor a
Franco Nogueira, que de resto tinha tido relações com um grande
amigo meu, o poeta Casais Monteiro, e, portanto, eu podia falar
com uma certa liberdade, por isso disse-lhe que o que me parecia
que se devia fazer era uma comunidade luso-afro-brasileira com o
ponto africano muito bem marcado. Quer dizer, se pudesse,
eu poria o ponto central da comunidade, embora cada um dos
países tivesse a sua liberdade, a sua autonomia, em África, talvez
Luanda ou no interior de Angola, no planalto, de maneira que ali
se congregassem Portugal e o Brasil para o desenvolvimento de África
e para que se firmasse no Atlântico um triângulo de fala portuguesa
— Portugal, Angola, Brasil — que pudesse levar depois a outras relações
ou ao oferecimento de relações de outra espécie aos outros países. Então
Franco Nogueira disse-me que isso era completamente impossível,
que Portugal não se podia dividir e que não havia nada a fazer nesse ponto.
De maneira que eu continuo a pensar que, aquando da revolução em 1974,
se poderia talvez ter tentado isso.”
(in Vida Conversável, Lisboa, Assírio & Alvim, 1994, pp. 51-52).
Resta perguntar se, esgotada a ilusão europeísta, que, como sabemos,
Agostinho da Silva igualmente antecipou, chegou a hora de tentar de novo.
Nós consideramos que sim.
Renato Epifânio
Presidente do MIL: Movimento Internacional Lusófono
Um comentário:
Embora não tenha lido o livro, gostei desta espécie de prefácio, onde se comprova não só a antevisão de Agostinho da Silva, mas também a sua faceta de estadista.
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