Isso, sim, é uma chancela à ignorância!
Assisti recentemente a dois programas de entrevistas da Globo News (Entre Aspas, com Mônica Waldvogel, e Espaço Aberto, com Alexandre Garcia) que se propuseram a discutir a tal polêmica do livro didático “Por uma vida melhor” da professora Heloisa Ramos.
O formato dos dois programas é bem parecido: escolhe-se um tema que está tendo grande repercussão na mídia e convidam-se dois “especialistas” para debatê-lo. O jornalista conduz o debate, fazendo algumas contextualizações e problematizações.
Mônica Waldvogel debateu o tema com dois escritores, Cristóvão Tezza e Marcelino Freire, e Alexandre Garcia convidou Maria do Pilar Lacerda – Secretária de Educação Básica do MEC, que tem formação em História, e o senador Cristovam Buarque, com tem formação em Economia.
Lamentavelmente, o tema Educação Linguística é um daqueles em que os especialistas da área, pessoas com graduação em Letras e formação em Linguística Teórica e Aplicada (Mestrado e Doutorado), não são levados em conta no debate. Dos quatro convidados, nenhum era linguista, de fato. O único que apresentou saber técnico e estrito para debater a questão foi Cristóvão Tezza, que lecionou, por algum tempo, a disciplina de Introdução à Linguística, na UFPR. O interessante é que ele não foi apresentado como professor de português, mas sim como escritor. Achei muito estranho que os dois programas (e tantos outros da mídia brasileira) não tenham considerado a necessidade de um ouvir um especialista em Educação Linguística, e nem a própria autora do livro. É no mínimo uma incompetência de quem elaborou a pauta.
Quando digo que é preciso ouvir o especialista em Linguística (Teórica ou Aplicada), não estou dizendo que pessoas não formadas em Letras e com Pós-Graduação em outras áreas não sejam capazes de debater a questão. Até seria interessante ver o posicionamento de pessoas ligadas a outras áreas e setores da sociedade falando sobre o tema. O problema é que, em geral, quando o assunto é língua, o discurso dos não especialistas provém de uma matriz não científica.
Existem basicamente duas matrizes de discurso sobre as questões linguísticas. A primeira delas, com maior penetração na escola, na mídia e na sociedade em geral, origina-se dos estudos clássicos greco-latinos. Vigora-se nessa matriz uma visão normatizada de língua; concebe-se os estudos linguísticos, ou melhor, os estudos gramaticais, como um agente regulador da língua. Nesse caso, o especialista, o gramático, tem o papel de julgar, legitimar e promover as formas linguísticas que deverão ser aceitas como cultas, elegantes, corretas.
A segunda matriz de discurso sobre língua é bastante recente. A publicação póstuma do livro Curso de Linguística Geral, de Ferdinand de Saussure, em 1916, é tomada como marco inaugural de um novo modelo e método de investigação linguística. Segundo essa matriz, o papel do especialista em estudos linguísticos, o linguista, é descrever os fenômenos regulares que ele encontra no comportamento linguístico dos falantes/escreventes da língua. Diferentemente do gramático, o linguista não julga e nem prescreve comportamento verbal aos falantes/escreventes. Ele apenas descreve o objeto, como deve fazer o cientista. Quem julga e regulamenta comportamentos não adota o método científico.
Toda essa divagação é para dizer que a mídia e escola brasileira ainda têm o seu discurso sobre língua fundado numa matriz não científica, a da gramática tradicional. É impressionante o fato de que pessoas com um razoável capital intelectual, quando opinam sobre questões linguísticas, abrem mão do discurso científico, de uma percepção mais aprofundada da realidade, para enveredar pelo discurso da tradição e do senso comum. Fiquei meio decepcionado com a fala do senador Cristovam Buarque. Ele tem certos posicionamentos bastante interessantes, especialmente no que diz respeito a políticas públicas para educação. Mas a fala dele sobre Educação Linguística é um mar de senso comum. Vê-se que o nobre senador não teve a menor preocupação em se preparar minimamente para o debate. Poderia ter lido o que os documentos oficiais como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN, PCNEM, PCN +) e Orientações Curriculares Nacionais (OCN) dizem sobre o tema. Também poderia ter lido o que alguns especialistas vêm dizendo sobre o assunto desde a década de 1980. Eis algumas sugestões de leitura (aos jornalistas e ao senhor senador) para um próximo debate sobre o tema:
ANTUNES, I. Aulas de português: encontro & interação. 2. ed. São Paulo: Parábola, 2003.
BAGNO, M. Dramática da língua portuguesa. São Paulo: Loyola, 2000.
______. (Org.). Norma linguística. São Paulo: Loyola, 2001.
______. A língua de Eulália. 11. ed. São Paulo: Contexto, 2001.
BORTONI-RICARDO, S. M. Variação linguística na sala de aula. São Paulo: Parábola, 2003.
______. Nós cheguemu na escola. e agora? São Paulo: Parábola, 2005.
BUNZEN, C.; MENDONÇA, M. (Org.). Português no ensino médio e formação de professor. São Paulo: Parábola, 2006.
GERALDI, J. W. Linguagem e ensino: exercícios de militância e divulgação. Campinas: ALB/Mercado de Letras, 1996.
______. Portos de passagem. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
______ (Org.). Texto na sala de aula. 3 ed. São Paulo: Ática, 2002.
ILARI, R. A linguística e o ensino da língua portuguesa. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
POSSENTI, S. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas: Mercado de Letras/Associação de leitura do Brasil, 1996.
SHERRE, M. M. Doa-se filhotes de poodle: Variação linguística, mídia e preconceito. São Paulo: Parábola, 2005.
SOARES, M. B. Linguagem e escola: uma perspectiva social. São Paulo: Ática, 1985.
A fala dos dois jornalistas é ainda mais carregada de senso comum. Não é de hoje que linguistas como Marcos Bagno (UNB), Sirio Poissenti (UNICAMP), Marta Scherre (UFRJ, UNB, UFES), Carlos Alberto Faraco (UFPR), só para citar alguns, vem denunciando o tratamento enviesado que mídia jornalística tem dado às questões linguísticas. Fiquei triste, mas não decepcionado com as colocações de Mônica Waldvogel e Alexandre Garcia. Eu realmente não esperava que fosse diferente.
Para ilustração, seguem alguns trechos da fala dos dois jornalistas que, vistas sob luz da Linguística moderna, soam como uma coletânea de obscurantismo medieval.
Vejam essa fala de Alexandre Garcia:
“Nesse livro, disse assim, que desde que o artigo esteja no plural o substantivo ou o verbo podem estar no singular, não importa a concordância. Eu me pergunto o seguinte: a escola não é um lugar que ensina pensar e pensar não demanda uma organização lógica, e a concordância não estimula a lógica no cérebro de um aluno? Eu tenho que pôr o verbo no plural, na terceira pessoa do plural, porque o objeto está no plural, porque o sujeito está no plural; o artigo tem que ir para o plural, tem que ser feminino se o sujeito é feminino. Isso demanda já trabalhar uma lógica. Se permite qualquer coisa, nós pega o peixe, e aí...”
Vejam se eu entendi as implicações teóricas da interrogação “A concordância não estimula a lógica no cérebro de um aluno?”. Isso quer dizer que o falante de uma língua com morfologia flexional abundante como o latim leva vantagem, em temos de ‘lógica cerebral’, sobre um falante do português, que por sua vez leva vantagem sobre um falante do inglês? É esse mesmo o arcabouço teórico que está por trás da fala do jornalista?
Na afirmação “Eu tenho que pôr o verbo no plural, na terceira pessoa do plural, porque o objeto está no plural”, de que língua ele está falando? Certamente não é do português.
Apresento a seguir algumas declarações e perguntas de Mônica Waldvogel:
“Ninguém fala o tempo todo segundo a regra culta. Mas caberia à escola aceitar outras variantes da língua indiferentes à regra gramatical? O jeito de falar do brasileiro, a forma como driblamos a norma, comemos os ‘s’ e desprezamos a conjugação dos verbos mostra uma língua viva ou uma gramática agonizante? Se a língua escrita, para ser compreendida, não aceita a falta de regras, é possível escrever direito sem falar em bom português? O poeta Fernando Pessoa, patriota da nossa língua, jamais condenou quem se expressava mal ou de forma incorreta, mas declarava seu ódio à página mal escrita, à ortografia errada, e explicava por quê: ‘Que não vê bem uma palavra, não vê bem a alma’ (Fernando Pessoa)”.
............................................................................................................................
_ Mas é uma gramática certa ou uma gramática errada? A gramática errada deve ser permitida na escola, ser aceita pela escola, ou não?
............................................................................................................................
Quem fala errado consegue escrever certo?
A interpretação que Mônica Waldvogel dá para o trecho do livro de Heloisa Ramos que despertou a polêmica é “super interessante”. A entrevistadora apresenta o fragmento do livro:
Mas eu posso falar ‘os livro’?
Claro que pode. Mas fique atento, porque dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico. Muita gente diz o que se deve o que não se deve falar e escrever, tomando as regras estabelecidas para a norma culta como padrão de correção de todas as formas linguísticas. O falante, portanto, tem de ser capaz de usar a variante adequada da língua para cada ocasião.
Na sequência, Waldvogel faz a seguinte paráfrase:
Trocando em miúdos, ela quer dizer você pode falar errado no seu ambiente a vontade porque afinal de contas você faz a escolha da língua que você quer falar, da maneira que você quer falar, mas convém aprender a norma culta ou alguém vai te dizer, você não serve pra esse emprego.
Qualquer aluno de graduação, que tenha feito a disciplina Introdução à Linguística, é capaz de rebater com razoável propriedade científica essas colocações.
Para finalizar, retomo uma expressão que o jornalista Alexandre Garcia usou, em uma das edições do Bom Dia Brasil, para rotular parte do conteúdo do livro da professora Heloisa Ramos. Garcia disse que isso é uma chancela à ignorância. A expressão foi, lamentavelmente, copiada e endossada por Lya Luft em seu artigo de Veja dessa semana (22 de maio de 2011). Vou dizer o que eu creio ser uma chancela à ignorância: repetir ladainhas do senso comum e se recusar a estudar o que a ciência linguística diz sobre o tema. Isso, sim, é uma chancela à ignorância, senhor Alexandre Garcia e senhoras Lya Luft e Mônica Waldvogel.
Sóstenes Lima
Professor de Linguística e Língua Portuguesa – UEG/UniEVANGÉLICA
Doutorando em Linguística - UNB
Links para assistir aos dois programas:
http://video.globo.com/Videos/Player/Noticias/0,,GIM1512056-7823-ESCRITORES+FALAM+SOBRE+O+ENSINO+DA+LINGUA+PORTUGUESA+NO+BRASIL,00.html
http://g1.globo.com/videos/globo-news/jornal-globo-news/v/v/1512976/
Assisti recentemente a dois programas de entrevistas da Globo News (Entre Aspas, com Mônica Waldvogel, e Espaço Aberto, com Alexandre Garcia) que se propuseram a discutir a tal polêmica do livro didático “Por uma vida melhor” da professora Heloisa Ramos.
O formato dos dois programas é bem parecido: escolhe-se um tema que está tendo grande repercussão na mídia e convidam-se dois “especialistas” para debatê-lo. O jornalista conduz o debate, fazendo algumas contextualizações e problematizações.
Mônica Waldvogel debateu o tema com dois escritores, Cristóvão Tezza e Marcelino Freire, e Alexandre Garcia convidou Maria do Pilar Lacerda – Secretária de Educação Básica do MEC, que tem formação em História, e o senador Cristovam Buarque, com tem formação em Economia.
Lamentavelmente, o tema Educação Linguística é um daqueles em que os especialistas da área, pessoas com graduação em Letras e formação em Linguística Teórica e Aplicada (Mestrado e Doutorado), não são levados em conta no debate. Dos quatro convidados, nenhum era linguista, de fato. O único que apresentou saber técnico e estrito para debater a questão foi Cristóvão Tezza, que lecionou, por algum tempo, a disciplina de Introdução à Linguística, na UFPR. O interessante é que ele não foi apresentado como professor de português, mas sim como escritor. Achei muito estranho que os dois programas (e tantos outros da mídia brasileira) não tenham considerado a necessidade de um ouvir um especialista em Educação Linguística, e nem a própria autora do livro. É no mínimo uma incompetência de quem elaborou a pauta.
Quando digo que é preciso ouvir o especialista em Linguística (Teórica ou Aplicada), não estou dizendo que pessoas não formadas em Letras e com Pós-Graduação em outras áreas não sejam capazes de debater a questão. Até seria interessante ver o posicionamento de pessoas ligadas a outras áreas e setores da sociedade falando sobre o tema. O problema é que, em geral, quando o assunto é língua, o discurso dos não especialistas provém de uma matriz não científica.
Existem basicamente duas matrizes de discurso sobre as questões linguísticas. A primeira delas, com maior penetração na escola, na mídia e na sociedade em geral, origina-se dos estudos clássicos greco-latinos. Vigora-se nessa matriz uma visão normatizada de língua; concebe-se os estudos linguísticos, ou melhor, os estudos gramaticais, como um agente regulador da língua. Nesse caso, o especialista, o gramático, tem o papel de julgar, legitimar e promover as formas linguísticas que deverão ser aceitas como cultas, elegantes, corretas.
A segunda matriz de discurso sobre língua é bastante recente. A publicação póstuma do livro Curso de Linguística Geral, de Ferdinand de Saussure, em 1916, é tomada como marco inaugural de um novo modelo e método de investigação linguística. Segundo essa matriz, o papel do especialista em estudos linguísticos, o linguista, é descrever os fenômenos regulares que ele encontra no comportamento linguístico dos falantes/escreventes da língua. Diferentemente do gramático, o linguista não julga e nem prescreve comportamento verbal aos falantes/escreventes. Ele apenas descreve o objeto, como deve fazer o cientista. Quem julga e regulamenta comportamentos não adota o método científico.
Toda essa divagação é para dizer que a mídia e escola brasileira ainda têm o seu discurso sobre língua fundado numa matriz não científica, a da gramática tradicional. É impressionante o fato de que pessoas com um razoável capital intelectual, quando opinam sobre questões linguísticas, abrem mão do discurso científico, de uma percepção mais aprofundada da realidade, para enveredar pelo discurso da tradição e do senso comum. Fiquei meio decepcionado com a fala do senador Cristovam Buarque. Ele tem certos posicionamentos bastante interessantes, especialmente no que diz respeito a políticas públicas para educação. Mas a fala dele sobre Educação Linguística é um mar de senso comum. Vê-se que o nobre senador não teve a menor preocupação em se preparar minimamente para o debate. Poderia ter lido o que os documentos oficiais como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN, PCNEM, PCN +) e Orientações Curriculares Nacionais (OCN) dizem sobre o tema. Também poderia ter lido o que alguns especialistas vêm dizendo sobre o assunto desde a década de 1980. Eis algumas sugestões de leitura (aos jornalistas e ao senhor senador) para um próximo debate sobre o tema:
ANTUNES, I. Aulas de português: encontro & interação. 2. ed. São Paulo: Parábola, 2003.
BAGNO, M. Dramática da língua portuguesa. São Paulo: Loyola, 2000.
______. (Org.). Norma linguística. São Paulo: Loyola, 2001.
______. A língua de Eulália. 11. ed. São Paulo: Contexto, 2001.
BORTONI-RICARDO, S. M. Variação linguística na sala de aula. São Paulo: Parábola, 2003.
______. Nós cheguemu na escola. e agora? São Paulo: Parábola, 2005.
BUNZEN, C.; MENDONÇA, M. (Org.). Português no ensino médio e formação de professor. São Paulo: Parábola, 2006.
GERALDI, J. W. Linguagem e ensino: exercícios de militância e divulgação. Campinas: ALB/Mercado de Letras, 1996.
______. Portos de passagem. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
______ (Org.). Texto na sala de aula. 3 ed. São Paulo: Ática, 2002.
ILARI, R. A linguística e o ensino da língua portuguesa. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
POSSENTI, S. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas: Mercado de Letras/Associação de leitura do Brasil, 1996.
SHERRE, M. M. Doa-se filhotes de poodle: Variação linguística, mídia e preconceito. São Paulo: Parábola, 2005.
SOARES, M. B. Linguagem e escola: uma perspectiva social. São Paulo: Ática, 1985.
A fala dos dois jornalistas é ainda mais carregada de senso comum. Não é de hoje que linguistas como Marcos Bagno (UNB), Sirio Poissenti (UNICAMP), Marta Scherre (UFRJ, UNB, UFES), Carlos Alberto Faraco (UFPR), só para citar alguns, vem denunciando o tratamento enviesado que mídia jornalística tem dado às questões linguísticas. Fiquei triste, mas não decepcionado com as colocações de Mônica Waldvogel e Alexandre Garcia. Eu realmente não esperava que fosse diferente.
Para ilustração, seguem alguns trechos da fala dos dois jornalistas que, vistas sob luz da Linguística moderna, soam como uma coletânea de obscurantismo medieval.
Vejam essa fala de Alexandre Garcia:
“Nesse livro, disse assim, que desde que o artigo esteja no plural o substantivo ou o verbo podem estar no singular, não importa a concordância. Eu me pergunto o seguinte: a escola não é um lugar que ensina pensar e pensar não demanda uma organização lógica, e a concordância não estimula a lógica no cérebro de um aluno? Eu tenho que pôr o verbo no plural, na terceira pessoa do plural, porque o objeto está no plural, porque o sujeito está no plural; o artigo tem que ir para o plural, tem que ser feminino se o sujeito é feminino. Isso demanda já trabalhar uma lógica. Se permite qualquer coisa, nós pega o peixe, e aí...”
Vejam se eu entendi as implicações teóricas da interrogação “A concordância não estimula a lógica no cérebro de um aluno?”. Isso quer dizer que o falante de uma língua com morfologia flexional abundante como o latim leva vantagem, em temos de ‘lógica cerebral’, sobre um falante do português, que por sua vez leva vantagem sobre um falante do inglês? É esse mesmo o arcabouço teórico que está por trás da fala do jornalista?
Na afirmação “Eu tenho que pôr o verbo no plural, na terceira pessoa do plural, porque o objeto está no plural”, de que língua ele está falando? Certamente não é do português.
Apresento a seguir algumas declarações e perguntas de Mônica Waldvogel:
“Ninguém fala o tempo todo segundo a regra culta. Mas caberia à escola aceitar outras variantes da língua indiferentes à regra gramatical? O jeito de falar do brasileiro, a forma como driblamos a norma, comemos os ‘s’ e desprezamos a conjugação dos verbos mostra uma língua viva ou uma gramática agonizante? Se a língua escrita, para ser compreendida, não aceita a falta de regras, é possível escrever direito sem falar em bom português? O poeta Fernando Pessoa, patriota da nossa língua, jamais condenou quem se expressava mal ou de forma incorreta, mas declarava seu ódio à página mal escrita, à ortografia errada, e explicava por quê: ‘Que não vê bem uma palavra, não vê bem a alma’ (Fernando Pessoa)”.
............................................................................................................................
_ Mas é uma gramática certa ou uma gramática errada? A gramática errada deve ser permitida na escola, ser aceita pela escola, ou não?
............................................................................................................................
Quem fala errado consegue escrever certo?
A interpretação que Mônica Waldvogel dá para o trecho do livro de Heloisa Ramos que despertou a polêmica é “super interessante”. A entrevistadora apresenta o fragmento do livro:
Mas eu posso falar ‘os livro’?
Claro que pode. Mas fique atento, porque dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico. Muita gente diz o que se deve o que não se deve falar e escrever, tomando as regras estabelecidas para a norma culta como padrão de correção de todas as formas linguísticas. O falante, portanto, tem de ser capaz de usar a variante adequada da língua para cada ocasião.
Na sequência, Waldvogel faz a seguinte paráfrase:
Trocando em miúdos, ela quer dizer você pode falar errado no seu ambiente a vontade porque afinal de contas você faz a escolha da língua que você quer falar, da maneira que você quer falar, mas convém aprender a norma culta ou alguém vai te dizer, você não serve pra esse emprego.
Qualquer aluno de graduação, que tenha feito a disciplina Introdução à Linguística, é capaz de rebater com razoável propriedade científica essas colocações.
Para finalizar, retomo uma expressão que o jornalista Alexandre Garcia usou, em uma das edições do Bom Dia Brasil, para rotular parte do conteúdo do livro da professora Heloisa Ramos. Garcia disse que isso é uma chancela à ignorância. A expressão foi, lamentavelmente, copiada e endossada por Lya Luft em seu artigo de Veja dessa semana (22 de maio de 2011). Vou dizer o que eu creio ser uma chancela à ignorância: repetir ladainhas do senso comum e se recusar a estudar o que a ciência linguística diz sobre o tema. Isso, sim, é uma chancela à ignorância, senhor Alexandre Garcia e senhoras Lya Luft e Mônica Waldvogel.
Sóstenes Lima
Professor de Linguística e Língua Portuguesa – UEG/UniEVANGÉLICA
Doutorando em Linguística - UNB
Links para assistir aos dois programas:
http://video.globo.com/Videos/Player/Noticias/0,,GIM1512056-7823-ESCRITORES+FALAM+SOBRE+O+ENSINO+DA+LINGUA+PORTUGUESA+NO+BRASIL,00.html
http://g1.globo.com/videos/globo-news/jornal-globo-news/v/v/1512976/
Um comentário:
UMA TROMBADA DO MEC
AFRONTA O BRASIL
José JPeralta
O texto do senhor SL parece apenas mais um “samba do crioulo doido”, de tão incoerente e frágil como se apresenta.
Apesar de seu propalado doutorado em linguística, sinto dizer-lhe que, no caso em pauta, os não linguistas, (alguns), a que se refere, sabem muito mais o que estão falando do que ele. Efetivamente, nós linguistas, não temos e nem pretendemos ter o monopólio da ciência da linguagem humana, até porque esta tem razões que própria razão desconhece.
Linguista que desconhece o capítulo “Sistema, Norma e Fala” tem grave falha em formação científica.
A linguagem é sempre muito mais do que um modelo linguístico, sempre reducionista, como todos os modelos. Não podemos, pois, erigi-lo como uma lei prepotente que tudo resolve. No cientista não cabe a arrogância do dogmático que se posiciona além do bem e do mal..., capaz de dar solução a todos os problemas, contradições e precariedades inerentes à condição humana. A questão de ensino da Língua materna é uma questão nevrálgica que interessa a toda a nação, onde os “linguista” são uma parte mínima a ser ouvida, sempre criticamente, rejeitando rolos compressores, sempre autoritários. Sem dogmatismos prepotentes e às vezes terroristas...
O linguista, se tiver uma visão holística sempre pode dar boa contribuição. Os dogmáticos e de visão meramente descritiva atuam em campo muito limitado. O saber da linguagem humana, escrita ou falada, portanto duplamente articulada, passa pela linguística descritiva, mas passa também pela gramática normativa, pela semiótica, pela sociologia, pela psicologia, pela Política da Língua e muito mais. Refiro-me a Política, com P maiúsculo.
Os grandes mestres Antônio Houaiss, Celso Cunha, entre outros, conheciam bem a questão, hoje, por muitos esquecida.
Querer sair a campo como tutores do ensino da Língua materna, sem ouvir, com respeito, outros especialistas, é, no mínimo, um acinte e um contrassenso.
A língua, além do capítulo de Linguística descritiva formal, tem dimensões semânticas, estilísticas, psicológicas, políticas, culturais etc, etc. Até a dimensão econômica que não há como descartar. Não dá para ter atitudes simplistas, em um assunto tão complexo e fundamental num pais civilizado, tal qual vem acontecendo.
Olhar uma só dessas dimensões é miopia. Pode levar a graves consequências. Falar do ensino de Língua Materna não é questão para neófitos de parca visão sócio-político-cultural.É um acinte criticar jornalistas e escritores por darem sua opinião nesta questão tão séria, qual seja: o MEC intervém de modo irresponsável e atabalhoado no ensino da Língua Portuguesa no Brasil.
Os autores citados pelo senhor SL, (Mônica, Tezza, Garcia, Lacerda e Buarque) não são, certamente, os pensadores mais avalizados para tratar sobre a questão em pauta do ponto de vista lingüístico . São pessoas avalizadas, como pensadores, como formadores de opinião e como cidadãos respeitáveis.
Neste caso ninguém tem o Monopólio do saber. O que não podemos deixar de saber é que há muitos outros lados da questão que não podem ser esquecidos ou que podem ser tratados em outros parâmetros e com outros paradigmas.
A Língua falada por um povo, devidamente normatizada, passa pelos modelos linguísticos, mas vai muito mais além, entrando nas questões de Política da Língua, tornando-a uma das forças matriciais da unidade e da soberania nacional.
Querer expor ideias esdrúxulas, de alguns dos autores citados na bibliografia, como se fossem a última palavra, seria, efetivamente, uma tragédia cultural. Pois foi nessa canoa furada que o MEC embarcou, ingenuamente (?!), cometendo um dos piores erros do MEC dos últimos tempos. Um erro primário, ofensivo a tantos pensadores, também linguistas e de outras esferas do conhecimento, que trataram este assunto com a maior seriedade e respeito. Voltarei ao assunto em breve. Aguarde.
[Nota: Este texto é um comentário a um artigo publicado no site http://casaagostinhodasilva.org ]
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