O apocalipse em banho-maria
Alberto Dines
Os ingleses são decididamente
diferentes. Assim é que na véspera da passagem do ano, quando todos tentam se
embalar com champanhe e esperanças, o
“Economist”, seu mais importante semanário e um dos mais lidos em todo o
mundo, circula com uma capa mefistofélica. O “Breve Guia para o Inferno” é uma engraçada e
elaborada charge onde diabinhos, diabos e asquerosas criaturas exibem os
pecados capitais interpretados pelos players da cena mundial.
Ninguém escapa: a Luxúria é
representada pelo general Petraeus e Berlusconi, banqueiros são engolidos pelo
monstro da Cobiça, Satanás, diabo-mor, maneja um painel denominado “mudanças
climáticas” enquanto segura a própria capa da revista. O único risonho, Barak
Obama, não obstante ostentar o pecado do Orgulho parece inebriado pela
auto-estima, sem reparar no abismo fiscal. Ao fundo, atolado no lodaçal, um
camburão designado como “jornalismo inglês”. A auto-flagelação faz sentido: os editores
preferiram poupar o premiê britânico a brigar com o governo. Ninguém é de
ferro.
A virada da ampulheta na próxima segunda, 31, será
iluminada pelos fogos de artifício, artificiosos e enganosos, pois o Dia
Seguinte já se prenuncia comprometido. Como numa tela do nosso conhecido
Caravaggio, o claro-escuro está mais escuro do que claro. O apocalipse esquenta
em banho-maria – devagar, infalível.
A crise econômica deixou de ser
notícia de jornal, é realidade palpável, concreta, brutal. Uma generalizada
sensação de década perdida está tirando dos jovens o gosto de começar e, dos
velhos, o prazer de contemplar.
O mundo enrolou -- evaporaram-se
edens e eldorados, sumiram as doutrinas messiânicas, as utopias estão
aposentadas, emergentes e submergentes empacaram. A democracia está em crise, a
prova é o tremendo aumento das manifestações de rua. O capitalismo está em crise,
a prova é a sua incapacidade para medicar-se, o socialismo está em crise, a
prova é a sua canibalização pelo corporativismo, o liberalismo está enfezado, a
prova é a submetralhadora debaixo do braço, a religião está em crise, a prova é
o seu apego ao poder temporal.
Isso é grave: os escritores
avisam que vão parar de escrever porque nada mais merece ser contado. Mais
grave ainda é o embaçamento do espelho da crise -- a mídia -- desconectada pelo
excesso de conexões.
A Europa, mostruário da paz, derrubou
fronteiras e agora está às voltas com
secessões na Bélgica e Espanha (a fome espanta qualquer disposição para
a fraternidade). Venezuela, Argentina e Paraguai estão matando a pauladas o
Mercosul sonhado por Bolívar.
BRICS não são exceção: o estupro
de uma jovem na Índia e as gigantescas manifestações de protesto exibem a enorme
distância entre crescimento e real desenvolvimento. O terror político entranhado
na Rússia é um remake tenebroso e gelado do fascismo mediterrâneo. Agarrados à
doida locomotiva chinesa voamos em direção de monumental incógnita que chinês
algum é capaz de deslindar.
E nós, privilegiados brasilianos, entre apagões e
ilusões, mas sempre abençoados pelos deuses, vamos enfim desfrutar o gosto de
viver sob o manto da lei. Sensação nova, estranha, complicada, penosa, com um travo do ceticismo no tocante a crimes e
castigos. Sem alternativas.
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