21 de maio de 2013

Agostinho da Silva






Há muita gente que julga que a cultura é falar francês, dançar bem, 
ouvir música e ter visitado exposições de pintura. Isso talvez fosse a
cultura de outras épocas, mas hoje não. Hoje temos que tomar cultura 
no sentido geral, mais próximo e no mais concreto da vida. Cultura, 
no fundo, é a maneira de ser de cada um. Exatamente como todos
nascemos, com tais características, e o que acontece depois na vida é
que se vai destruindo muitas dessas características e como eu costumo 
dizer, quase todas as pessoas morrem sem nunca ter vivido... 
viveram uma vida emprestada, viveram a vida dos outros.

Assim como nós fisicamente, nos cinco bilhões de pessoas, 
não há dois iguais por fora, no feitio do nariz ou na cor dos olhos, 
da mesma maneira não há duas pessoas iguais por dentro. 
As pessoas todas são diferentes. De maneira que a vida certa (do universo) 
do mundo inteiro seria que cada um pudesse viver a sua vida e cada 
um dos outros pudesse ter esse espetáculo extraordinário de 
ver pessoas diferentes à sua volta e não como tantas vezes acontece, 
sobretudo em pessoas que gostam de mandar nos países, achar que
 deve ser tudo igual e quando aparece alguém diferente se ofendem, 
acham que está fugindo das regras, saindo da vida que deve ter.

Os meninos devem ser estimulados a desenhar ou a redigir aquilo 
por que têm interesse, contar a sua história, seja em imagens, no 
desenho ou pintura, seja redigindo em verso por exemplo. 
Escolas em que os meninos sejam incitados a fazer poesia e 
que descubram que afinal, os poetas não são seres extraordinários. 
Não. Eles foram apenas os que tiveram mais sorte que os outros. 
Encontraram circunstâncias na vida, na casa em que se criaram, 
nas escolas em que andaram, na vida material que tiveram que 
lhes permitiu conservarem-se poetas, ao passo que outros que 
também nasceram poetas... 
Porque não existem só poetas de verso. A idéia de que a pessoa 
tem de se dizer poeta porque faz verso, não é verdade. 
Poeta é aquele que cria na vida alguma coisa que na vida não existia. 
Não existia aquele poema, ele criou, pronto, é poeta. Mas pode ser 
uma música que ele compôs, um bailado por exemplo. 
Pode ser qualquer experiência de Química ou de Física
 que não se tenha feito. Qualquer avanço da Matemática,
por exemplo, que conseguem.
  
Em Portugal existe um painel no Museu das Janelas Verdes, 
uma pintura do sec. XV que representa o dia em que se celebrava 
o Espírito Santo no mês de maio. Era o dia em que o povo português 
dizia aquilo que queria. Sabem o que ele queria nesse dia? 
Que todas as crianças fossem de tal modo livres e desenvolvidas 
que pudessem dirigir o mundo pela sua inteligência, pela sua imaginação, 
não propriamente por saberem aritmética ou ortografia, 
mas por serem eles próprios, porque eram os pequenos, 
as crianças que deviam dar ao mundo e aos homens, 
o exemplo do que devia ser a vida.
E em segundo lugar eles diziam que a vida devia ser gratuita, 
que ninguém tinha que pagar para viver e que trabalhar para viver. 
Que tendo a vida sido dada de graça, era inteiramente absurdo,
passar o resto da vida a ganhá-la. E eles então achavam que a vida 
um dia há de ser de graça para toda a gente. E ainda uma coisa 
extremamente importante. Iam à cadeia da terra e abriam as 
portas para que os presos saíssem, para que ninguém mais passasse 
a vida amuralhado e encerrado entre grades; que viesse para a 
vida e na vida se retemperasse e na vida renascesse para ser 
aquilo que devia ser. Era uma anistia talvez. Um sinal auspicioso, 
de que um dia o crime desaparecerá do mundo. 
Texto adaptado da conferência Namorando o Amanhã, realizada 
em maio de 1989 na Cooperativa de Animação Cultural de Alhos Vedros - Portugal.

Agostinho da Silva, professor, escritor, poeta e filósofo. 
Construiu ao longo de sua vida uma obra revolucionária de 
luta pela educação e a cultura. Nasceu no Porto em 1906, 
cresceu em Barca d’Alva, fronteira com Espanha. 
Viveu 25 anos no Brasil - de 1944 a 1969 onde deixou muitos 
discípulos e amigos. Fez a passagem em Lisboa, 1994. 
Possui uma obra extensa em Educação e Cultura Portuguesa e Brasileira. 
No Brasil ajudou a criar quatro universidades: na Paraíba, Santa Catarina, 
Bahia e Brasília onde fundou o CBEP Centro Brasileiro de Estudos Portugueses,
 muito atuante até 1968 quando a UnB foi invadida. 
(Romulo Andrade)

Um comentário:

Jorge da Paz Rodrigues disse...

Gostei desta espécie de "revisitação".

Esperemos que o espírito santo nos continue a iluminar a todos.