o professor Agostinho sempre entendeu as pessoas. Nunca perguntava
sobre suas crenças, ambições, inseguranças. Por isso vivia rodeado de
idealistas, sonhadores, trapistas, estudiosos e sábios.
Muitas e muitas vezes me propôs realizar trabalhos em lugares
distantes como Goa. Ou, ouvindo-me falar no meu desejo de conhecer Anchorage,
dizia: - E por que não?
Nada era impossível para ele. Bastava desprender as amarras da
Torre de Belém e lançar-se ao mar.
Sabendo e apoiando minhas incursões no mundo das tintas, acenava-me
com a possibilidade de ter um ateliê em Lisboa antiga e ali dedicar-me só à
pintura.
-
Uma licença do Senado, e venha para aqui - dizia ele.
E eu sonhava em ir e por lá ficar uma temporada. Mas nunca fui.
Como nunca fui a Anchorage.
Foi nos primeiros anos da Universidade de Brasília, quando
diretoraexecutiva do CBEP (Centro Brasileiro de Estudos Portugueses), que
realizei o único trabalho objetivo para ele: recebi a incumbência, e cumpri, de
alugar um apartamento em Lisboa, destinado a receber estudantes brasileiros e
africanos que fossem realizar pesquisas em Portugal. O aluguel do apartamento,
devidamente equipado e com telefone, não teve continuidade em conseqüência da
revolução de 64. O CBEP da UnB perdeu sua autonomia financeira e a própria
autonomia de vida.
Nos anos 80, quando mais viajei à Europa, sempre me encontrava com
o professor Agostinho em minhas passagens por Lisboa. Comunicava-me com ele e
com minha querida amiga Maria Cecília Guerreiro de Sousa, sua ex-secretária em
Brasília. E lá estávamos em um restaurante da cidade alta, falando sobre
projetos e sobre sonhos. Nunca sobre problemas que, se aflorados, à presença e
conversa com o Professor, estavam, se não resolvidos, pelo menos equacionados.
Ele iluminava o escuro dos problemas e os dedilhava como contas de luz, de
maneira que se tornava, se não fácil, pelo menos possível resolvê-los.
Nos comunicamos sempre por cartas ao longo dos anos. E o mais
bonito dessas cartas era o possível de tudo, a não-menção de doenças, velhice
ou morte.
Quando Ludmila, minha neta, veio morar comigo, ele a encomendou a
um anjo-da-guarda. E todos os dias, de manhã bem cedo, dava água para o anjo de
Ludmila. Escreveu cartas lindas para ela, que, quando aprendeu a ler,
apreciou-as muito. Antes porém, ela lhe mandou um bilhete com impressões de
patas de gatos. Ele respondeu com outro, com as impressões das patas dos seus
gatos. Ludmila o chamava de "o George".
Este foi o professor Agostinho que eu conheci, amei e respeitei
como pessoa profundamente humana, alegre e acessível a todos os sonhos e
apelos. Meu amigo. Sobre o filósofo e sábio que ele foi, não falarei. Nem o
saberia.
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Texto recolhido da obra IN MEMORIAM de AGOSTINHO DA SILVA. Organização de Renato Epifânio, Romana Valente Pinho e Amon Pinho Davi. Portugal: Zéfiro, 2006, pp. 288-289.
Imagem: Domingo de Páscoa, 3 de Abril de 1994 - Fotografia de Jorge Barros (dia do falecimento de Agostinho da Silva)
Imagem: Domingo de Páscoa, 3 de Abril de 1994 - Fotografia de Jorge Barros (dia do falecimento de Agostinho da Silva)
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