António Braz Teixeira
NOS DUZENTOS ANOS DE DOMINGOS GONÇALVES DE MAGALHÃES
Em 13 de Agosto passado, cumpriram-se duzentos anos sobre o nascimento, no Rio de Janeiro, de Domingos Gonçalves de Magalhães (1811-1882), figura maior da literatura, da cultura e do pensamento brasileiros, que, no novel Império, veio a desempenhar um papel idêntico ao que, entre nós, coube a Almeida Garrett. Como o autor das Viagens, o escritor fluminense foi o primeiro e mais activo responsável pela introdução do romantismo na cultura brasileira, quer como poeta quer como dramaturgo, fundando a sua obra de criação literária numa renovadora e pessoal reflexão filosófica, de sinal espiritualista, numa linha especulativa em larga medida afim das de Amorim Viana e Cunha Seixas.
Discípulo de Francisco de Mont’Alverne (1784-1858), monge franciscano cujo pensamento reflectia ainda concepções sensistas de que, no Brasil, o mais significativo representante fora Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846), Gonçalves de Magalhães, concluído a curso de Medicina, na Escola recém-criada da sua cidade natal, passou alguns anos em França, completando a sua formação, onde contactou com o eclectismo espiritualista de Victor Cousin e Théodore Jouffroy, que, num primeiro momento, parece tê-lo seduzido, e onde, em 1836, com M. Araújo Porto-Alegre e F.S. Torres Homem, fundou a “revista brasiliense” Niterói, de “ciência, letras e artes”, movidos os três pelo “amor ao país” e pelo “desejo de ser útil aos seus concidadãos”, com vista a que estes se acostumassem “a reflectir sobre os objectos do bem comum, e da glória da sua pátria” e neles se desenvolvesse “o amor e a simpatia geral para tudo o que é justo, santo, belo e útil”. Daí que nela se dedicasse especial atenção tanto à economia política, “tão necessária ao bem material, progresso e riqueza das nações”, como às ciências, à literatura nacional e às artes “que vivificam a inteligência, animam a indústria, e enchem de glória e de orgulho os povos que as cultivam”, como se esclarecia na abertura do primeiro dos seus dois números.
Em cada um deles publicou o jovem intelectual fluminense textos que davam conta das suas preocupações: o Ensaio sobre a história da literatura no Brasil (no nº 1) e os estudo Filosofia da Religião, sua relação com a moral e sua missão social (no nº 2). Enquanto o primeiro revela o interesse do moço escritor na criação e na consolidação de uma literatura nacional brasileira, distinta da portuguesa, de que fizera parte, o segundo aponta já para o profundo anseio religioso que virá a caracterizar o seu pensamento filosófico.
No mesmo ano do aparecimento de Niterói, mas agora nos Rio de Janeiro, Gonçalves de Magalhães dá à estampa a colectânea lírica que marca o início do romantismo literário brasileiro, o volume Suspiros poéticos e saudades (1836). Um decénio após a publicação de Camões (1825), também no Brasil o movimento romântico se iniciou sob o signo da saudade e revelando uma vivência do sentimento saudoso próxima da garrettiana.
Escrito, em grande parte, em Paris, como o poema do vate lusitano, e reflectindo, como ele, a experiência do exílio (se bem que voluntário, no caso do lírico brasileiro), o sentimento saudoso é ali apreendido por Gonçalves de Magalhães como “melancólica dor” e “tirano da ausência”, que “retrata em fugitiva sombra (…) a imagem do passado”.
Convergindo com Garrett (e com D. Francisco Manuel de Melo) no reconhecimento do carácter contraditório e ambivalente da saudade, do mesmo passo que a designa por “aflição dura e terna”, dirá:
“Mau grado o teu pungir, como és suave!
Como a rosa de espinhos guarnecida
Agrilhoa e apraz co’o doce aroma
Tu feres e mitigas com lembranças”
para vir a concluir, rendido à mesma saudade:
“Pois que em minha alma habitas (…)
Saudade, serei teu… Saudade, és minha”
Dois anos depois e convergindo de novo com o nosso grande romântico, no intuito de criar um dramaturgia nacional, Magalhães vê subir à cena a tragédia em cinco actos, em verso,António José de Almeida ou o poeta e a Inquisição, no mesmo ano em que, em Portugal, é representado, pela primeira vez, Um auto de Gil Vicente. Se, entre nós, Garrett se inspirava na figura do fundador do teatro português, no Brasil, o jovem dramaturgo procura no “Judeu” essa mesma inspiração fundadora.
É a mesma preocupação de reivindicar a autonomia cultural do Brasil relativamente a Portugal que se encontra na raiz da tentativa de epopeia nacional que é o poema épico, em dez cantos, A confederação dos Tamoios (1856), dedicado ao Imperador D. Pedro II, a cujas expensas foi publicado.
Se parece hoje inegável que a poesia lírica de Gonçalves de Magalhães não alcança a qualidade ou a altura da de Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu ou Fagundes Varela, e se, como dramaturgo, as suas duas tragédias se situam abaixo de obras como Leonor de Mendonça (1846), de Gonçalves Dias, ou Macário (1851), de Álvares de Azevedo, já como pensador a sua obra ocupa um lugar cimeiro no conjunto da reflexão brasileira de Oitocentos, ao lado das de Silvestre Pinheiro Ferreira, Tobias Barreto (1839-1889) e Farias Brito (1862-1917), marcando, de certo modo, a autonomia especulativa do Brasil e conferindo ao movimento romântico uma dimensão que o português não logrou atingir. Daí que, quando a partir de meados dos anos 60 do século XIX, as novas correntes e doutrinas positivistas, monistas, evolucionistas e cientificistas começam a encontrar eco nas duas culturas de língua portuguesa, seja diverso o alvo das críticas dos respectivos sequazes: enquanto, em Portugal, a denominada “Questão Coimbrã” se limita ao puro plano literário, em torno da figura e da obra de Castilho, no Brasil, a chamada “Escola do Recife” coloca no centro do debate o espiritualismo e o pensamento filosófico de Gonçalves de Magalhães, de modo especial a obraFactos do espírito humano, em que o especulativo fluminense procedeu a uma demorada refutação do sensismo e ao delineamento de uma filosofia do Espírito, de acentuado pendor ético e religioso, que claramente se distingue do eclectismo a que aderira, embora com reservas, durante o seu período parisiense, mas de que começou a afastar-se, decididamente, a partir de meados da década de 40, como o revela o ensaio A origem da palavra (1844).
Entendendo a Filosofia como actividade da razão que busca a verdade, advertia, contudo, o filósofo brasileiro que está é realidade divina e não humana, pelo que se a razão é uma força activa e livre, o seu centro de gravidade não pode deixar de ser a verdade que existe em Deus, nem a Filosofia deixar de ser a ciência universal que trata do espírito humano e das suas relações com Deus e com o Universo. Deste modo, para Gonçalves de Magalhães, sem prejuízo da sua autonomia como actividade espiritual de busca da verdade, a Filosofia encontraria a sua fonte na religião, assim como o mistério seria, a um tempo, o fundo do homem e a forma da verdade.
Notava o filósofo que não resultava daqui qualquer conflito ou oposição entre razão e fé, pois que, sendo a Filosofia a ciência de todas as coisas em relação ao sujeito que pensa e à causa que as produz (Deus), e dirigindo-se a revelação divina à razão que a converte em fé, nenhum conflito pode existir entre as verdades da razão e as da fé, havendo, pelo contrário, uma íntima relação entre uma e outra. Também o conhecimento científico, para o especulativo brasileiro, não seria mero produto da vista ou do tacto, nem se reduziria à observação e à experiência, sendo sempre, e necessariamente, produto da razão humana, elevando-se à Razão Divina. Deste modo, Religião, Filosofia e Ciência, porque tinham uma raiz comum nas leis universais da razão – mas de uma razão aberta tanto ao mistério e à revelação como à sensação e à imaginação – encontravam o seu último fundamento e garantia na Razão Divina, constituíam actividades do espírito entre as quais havia aquela perfeita e complementar harmonia que decorre da essencial unidade do mesmo espírito.
In NOVA ÁGUIA: REVISTA DE CULTURA PARA O SÉCULO XXI, nº 8, 2º Sementre de 2011.
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