1 de abril de 2011

Em Convergência da Língua Portuguesa

ASSENSO DA FÉ: 
O PORTUGUÊS COMO LÍNGUA OFICIAL 
NOS QUATRO CONTINENTES 

 
Enilde Faulstich 

Pós-doutorado com estágio feito nas áreas de Terminologia, Lexicografia e Políticas Lingüísticas no Département de langues et linguistique, Faculté des lettres da Université Laval, Québec, Canadá. 


No Sermão de Santo Antônio, também conhecido como “Sermão de Santo Antônio aos peixes”, pregado na cidade de São Luís do Maranhão, no ano de 1654, o Padre Vieira escreve uma alegoria - um tipo de metáfora - por meio da qual compara uma realidade de caráter abstrato com uma expressão concreta, visível, a fim de atingir uma percepção plástica do objeto, uma personificação daquilo que não é pessoa. Neste Sermão, Vieira louva que “ao menos têm os peixes duas boas qualidades de ouvintes: ouvem e não falam.” – eis uma das alegorias, se não a principal, do Sermão citado. Em continuação diz Vieira que:
Oh grande louvor verdadeiramente para os peixes, e grande afronta e confusão para os homens! Os homens perseguindo a António , querendo-o lançar da terra, e ainda do mundo, se pudessem, porque lhes repreendia seus vícios, porque lhes não queria falar à vontade, e condescender com seus erros, e no mesmo tempo os peixes em inumerável concurso acudindo à sua voz, atentos, e suspensos às suas palavras, escutando com silêncio, e com sinais de admiração e assenso (como se tivessem entendimento) o que não entendiam. Quem olhasse neste passo para o mar e para a terra, e visse na terra os homens tão furiosos e obstinados, e no mar os peixes tão quietos e tão devotos, que havia de dizer? Poderia cuidar que os peixes irracionais se tinham convertido em homens, e os homens não em peixes, mas em feras. Aos homens deu Deus uso de razão, e não aos peixes; mas neste caso os homens tinham a razão sem o uso, e os peixes o uso sem razão.
Bem, fizemos um recuo no tempo — fomos ao séc. XVII — para, a partir dessa alegoria de Vieira, estabelecer uma conversa política — de Política Linguística, melhor ainda, de Política da Língua Portuguesa. Vejamos. A chegada dos portugueses aos portos, tocados pelos navegantes, criou o mundo da Língua Portuguesa transplantada, em que, por meio de missões, a língua foi implantada. Depois disso, criados os Estados nacionais, o Português desenhou o espaço geopolítico do que seria a Lusofonia no mundo. Séculos já decorridos, as Nações constituídas por embates internacionais e locais fixaram comunidades de fala, com línguas resistentes, que não se deixaram assimilar pela política missionária que tomou conta da terra, onde passaram a habitar nativos e portugueses. Mesmo subjugado ao veio capitalista dos colonizadores, cada um dos Estados se manteve original e, assim, angolano, caboverdiano, guineense, moçambicano e santomeense são africanos, brasileiro é sul-americano, timorense é asiático e português é europeu. Ninguém virou o outro, e, tampouco, os outros viraram um. O certo é que, na contemporaneidade, uma forma de aproximar culturas de povos que tão distantes vivem surgiu da vontade política do Brasil a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa — CPLP —, constituída por Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Talvez essa tenha sido motivada por uma nova intenção de reinterpretar Lusofonia, nos moldes dos blocos de economia política, que vigem no mundo. No entanto, duas questões, que procuraremos relacionar, direta ou indiretamente, ao título desta palestra, merecem nossa reflexão. A primeira questão que trazemos à mesa do debate é se a CPLP é uma comunidade de assenso. E a segunda, tomando de empréstimo a alegoria do PE. Antônio Vieira, é saber se nós, participantes da CPLP, somos PEIXES. 

Assenso, relembremos, quer dizer concordância, consentimento, adesão mental, e, ainda, do ponto de vista da filosofia moderna, aceitação da verdade de uma proposição. Isso posto, concordamos que a CPLP é uma comunidade de assenso. Mas, para além desse sentido genérico, cabe questionar se a CPLP é uma comunidade de assenso de fé ou de assenso pela fé. Eis que continuamos com a questão aberta. Adiantemos que não estamos fazendo um jogo de palavras, mas querendo discutir a ordem política da CPLP, por meio do papel que a Língua Portuguesa representa no Estado supranacional em que está inserida e que tem efeitos significativos, e distintos, na estrutura cultural de cada país-membro da Comunidade. Para melhor esclarecer o que queremos aqui dizer, retomemos os estatutos da CPLP. Nos Estatutos da CPLP, documento originário do ato de criação, três são os objetivos gerais: 1) «concertação político-diplomática entre os seus Membros em matéria de relações internacionais, nomeadamente para o reforço de sua presença [da CPLP] nos fóruns internacionais»; 2) «a cooperação, particularmente nos domínios económico, social, cultural, jurídico e técnico-científico»; 3) «a materialização de projectos de promoção e difusão da Língua Portuguesa» . Até então, a língua portuguesa no espaço da CPLP tem sido muito mais uma representante da latinidade do que da lusofonia. A distinção se faz justamente pelo plurilinguismo de cada um dos países, em que uma língua de origem latina — o português — se mantém no contraste e no contato com línguas não latinas, de tal forma que a CPLP não sabe muito bem o que fazer com a promoção e a difusão da Língua Portuguesa. Para que a CPLP materialize, de fato, o uso da língua portuguesa, a “implantação” da Língua deverá ser maior do que a “difusão” e do que a “promoção”, sob pena de se manter como uma metáfora, uma alegoria, em que os “comunitários” são “peixes de duas boas qualidades: ouvem e não falam.” O que temos visto para a promoção e difusão da língua são projetos que falam sobre a língua portuguesa e sobre as línguas locais, mas não vemos a execução de projetos de ensino e de aprendizagem que levem os cidadãos a exercitarem a fala em Língua Portuguesa, na variedade do Estado, e nas variantes resultantes, bem como em línguas locais, ao lado do português. Projetos operacionais de fala e de escrita implantarão o bilinguismo ou o plurilinguismo necessário, desde que fundamentados na lingüística das línguas e executados por linguistas que saibam o que precisa ser feito. No âmbito dessas reflexões, é preciso compreender que, do ponto de vista de política de língua, o binômio Estado-Nação não funciona, porque o Estado, que contém o conceito de Nação, possui soberania como país, com estrutura e organização política próprias, com controle financeiro e administração autônomos. Por sua vez, a Nação é percebida na abstração de território, que tem limites definidos e símbolos nacionais exclusivos, que sobrelevam o espírito cívico (de certo, cultural). Entre estes símbolos, se encontram as línguas, sejam elas quais forem. Cabe inserir, ainda, nesse conjunto de conceitos, o de política linguística, que, no dizer de Calvet, é o conjunto de escolhas conscientes no que diz respeito às relações entre língua(s) e vida social.
Para finalizar, retornemos à questão posta anteriormente: a CPLP é uma comunidade de assenso de fé ou de assenso pela fé? Digamos que, até então, como língua oficial nos quatro continentes, o Português mantém uma Comunidade de assenso pela fé, quando deve, pelos princípios sociais, históricos, lingüísticos, políticos e comunitários, manter o assenso de fé, porque, enquanto aquele (pela) é um caminho, este (de) materializa a constituição do objeto de análise. A CPLP é, pela sua natureza, um importante veículo de manutenção do vigor da Língua Portuguesa nos quatro continentes. Porém, as qualidades de promoção e difusão, enunciadas em um dos objetivos gerais, precisam, de fato, fazer parte de um escopo funcional cujos fundamentos sejam não só capacitar os indivíduos a falar e a escrever em português, mas também nas primeiras línguas, porque estas resultam de aquisição da linguagem, que não pode se perder, tendo em vista que é ela — a linguagem — que mantem as especificidades culturais de cada País-Membro da CPLP.

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