26 de junho de 2011

jornalístiCAS

Por que vale a pena ouvir Marina Silva
Eliane Brum

Gosto de acompanhar a trajetória de Marina Silva porque ela soa como algo novo em um momento histórico do Brasil em que até o que se prometia diferente ficou dolorosamente igual. Acredito que, mesmo para seus (muitos) inimigos, é possível (sempre é) discordar de suas ideias, mas acho difícil duvidar, pelo menos até hoje, de sua integridade ética.

E ética, convenhamos, é algo que foi varrido do horizonte da política brasileira, o que causa, a mim e a muitos, um bocado de desespero.

Aprecio a delicadeza firme de Marina Silva, que antes de se tornar política gastou as mãos e a saúde nos seringais do Acre, foi empregada doméstica em Rio Branco e, com grande coragem e esforço pessoal, se formou professora. Respeito sua força num corpo tão frágil, contaminado por mercúrio e solapado por três hepatites, cinco malárias e uma leishmaniose; sua voz que vem de uma garganta arranhada, mas que se expressa com tanta inteligência apesar de só ter se alfabetizado aos 16 anos.

Por isso, recomendo que assistam ao Roda Viva (TV Cultura) em que Marina Silva foi a entrevistada, na segunda-feira, 13/6. Com o braço direito enfiado numa tipoia porque uma ressonância magnética constatou uma ruptura parcial no músculo, ela usa a esquerda para dar ênfase às palavras com gestos elegantes. Sim, Marina é elegante, não daquele jeito que se compra em loja, mas daquele que emana da inteireza de sua postura na vida. Vale muito a pena abrir um espaço na rotina e escutá-la – o link está aqui, basta clicar. Especialmente o segundo e o terceiro blocos são muito esclarecedores em mais de um sentido. Porque, acho importante repetir, estamos diante de uma encruzilhada no Brasil.

Se o país fosse uma pessoa, estaria naquele momento da vida em que pode ir por aqui ou por ali, e qualquer que seja a decisão tomada, ela vai definir o resto da sua existência – e o bem-estar ou não de seus descendentes. Se não compreendermos isso e não nos posicionarmos, vamos deixar que outros decidam a nossa vida, que os “outros” de sempre decidam o futuro do país com a costumeira pequeneza de ideais (e de ideias) e o desrespeito pela coisa pública que temos testemunhado no cotidiano do Congresso e de alguns setores do governo.

O novo (e nocivo) Código Florestal – que ainda pode ser rejeitado no Senado se a sociedade civil fizer o seu papel – e a licença para a usina de Belo Monte são questões estratégicas, que deveriam estar sendo discutidas nas ruas, com a família na mesa do jantar, nas escolas e nas universidades – e não estão. E Marina Silva é uma das poucas pessoas públicas que tem se dedicado a desmascarar com propriedade as mentiras que circulam por aí. Mentiras que circulam há tanto tempo que colam, mesmo em gente inteligente, como verdade. E são usadas com a habitual má fé por aqueles que só pensam na urgência do seu próprio bem-estar. Como disse Marina Silva, “as políticas para o Brasil devem ser de longo prazo, mas os políticos são de curto prazo”.

É bastante impressionante, mas, ainda hoje, para parte da população as questões ambientais soam como algo descartável, uma espécie de luxo, de assunto menor, ao qual se pode prestar atenção ou não. Parece não compreender que a escassa preocupação com os recursos naturais e as fortes pressões contrárias à sua preservação interferem na sua vida já. Esquece-se de todas as perdas que já sofreu no dia-a-dia por causa da contaminação do meio ambiente e se acostuma com qualquer coisa, até mesmo com o fedor do rio que banha sua cidade e a fuligem que cobre sua pele depois de um dia de trabalho.

Ambientalistas são tachados de “ecochatos”, como se estivessem atrapalhando uma festa – e não tentando salvá-la. (Assim como colunistas que voltam à questão com frequência.) Aqueles que lutam pela preservação ambiental são imediatamente colocados, pelas raposas de plantão, como se fossem contra o desenvolvimento e contra a agricultura e a pecuária. E o mantra é reproduzido pela manada de sempre. Quando, na verdade, são apenas os setores mais atrasados do agronegócio que defendem teses como a do novo Código Florestal, já apelidado de “Código de Devastação Florestal”.

Só lembrando: entre outras aberrações, o texto perdoa quem ocupou e desmatou áreas ilegais até 2008 e facilita o cultivo e a pecuária em zonas de proteção ambiental, inclusive nascentes. A mera discussão do novo Código pelos deputados causou a multiplicação do desmatamento no Mato Grosso, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Na semana de aprovação do texto pela Câmara, cinco agricultores ligados à preservação da Amazônia foram assassinados no Pará e em Rondônia – uma prova cabal de que o Brasil ainda é um país mais velho do que novo em muitas de suas práticas.

Se o novo Código for aprovado, proteger as florestas se tornará uma exceção – e não a regra. Homens e mulheres que lutam em defesa do meio ambiente nos rincões do país, como afirma Marina Silva, até agora tinham pelo menos a lei ao seu lado. Se o novo Código Florestal for aprovado também no Senado, aqueles que hoje arriscam (e muitas vezes perdem suas vidas) para proteger a floresta estarão na ilegalidade.

O agronegócio moderno (e sim, ele existe no Brasil) sabe que só vai vender no Exterior quem tiver respaldo ambiental. Quem pratica a agricultura predatória estará condenado no futuro próximo, é um Neandertal num mundo assombrado pela devastação do planeta. A questão é falsamente colocada – de propósito, para confundir a população – como uma oposição entre o agronegócio e o meio ambiente. De fato, o que há é uma discussão em torno da escolha dos rumos do país, uma opção entre manter as velhas práticas de exploração indiscriminada dos recursos naturais, como se não existissem outros caminhos, ou incluir o Brasil entre os países engajados no desenvolvimento sustentável.

O manejo dos recursos naturais – e especialmente da água – tem movido as discussões sérias do planeta. Até grandes predadores têm percebido que, se nada fizerem, vão ter problemas ainda maiores logo ali na frente. Por que a China, a nova potência econômica do mundo, mas ameaçada pela degradação ambiental e a desertificação, tem como prioridade a construção da “Grande Muralha Verde” (em alusão à histórica Muralha da China), com o objetivo de reflorestar 356 mil quilômetros quadrados de terra até 2050? Alguém conhece competidores mais agressivos na economia internacional que os chineses? Alguém acha que eles querem reflorestar porque acham as árvores bonitas ou precisam de sombra? Óbvio que não. É por pragmatismo e visão de futuro.

Enquanto isso, no Brasil, vende-se o retrocesso embalado em desenvolvimento. Em vez de o país ocupar uma posição estratégica nesse momento histórico do mundo, na medida em que apesar da devastação ainda pode contar com recursos naturais importantes, parece existir no Brasil um esforço para que o país volte para trás, apenas para que os mesmos de sempre não percam seus privilégios. E o mais incrível é que pessoas decentes caem nesse conto da Carochinha. É para estas, as decentes, que escrevo, na tentativa de que comecem a duvidar das máximas repetidas a exaustão pelos suspeitos de sempre.

Quando a proposta é manter as conquistas e aprimorar a legislação ambiental – em vez da libertinagem difundida no novo Código Florestal –, logo surge aquele discurso de que a riqueza do Brasil são as commodities (mercadorias de origem, matérias-primas) e que os “gringos”, sempre eles, querem que o Brasil deixe de ser uma potência agrícola. Essa conversa é mais falsa que uma nota de três reais, mas cola. O pior é que cola.

Parte da população não percebe que a maior commodity do Brasil não é a soja, a carne ou o café, como tem alertado o recém criado Comitê Brasil em Defesa das Florestas e do Desenvolvimento Sustentável. A mais importante commodity do Brasil é a água. Sem água, qualquer um percebe que não há nem agricultura. E as mudanças propostas pelo novo Código Florestal colocam a grande reserva hídrica do Brasil em risco. Ou seja, o discurso mais retrógrado deste país, vendido como sendo “em prol do desenvolvimento”, é aquele que quer acabar com a riqueza estratégica do país, aquela capaz de garantir ao Brasil um lugar de liderança no cenário mundial. É por isso que esta não é uma queda de braço entre ambientalistas e ruralistas – mas uma urgência de toda a sociedade.

Comecei esta coluna falando de Marina Silva porque ela tem representado uma nova forma de fazer política – depois da corrosão ética do PT. Não sei se ela fica ou não no PV, que por enquanto tem preferido ser um partido de ocasião, nem como articulará sua próxima candidatura. O que acho importante reconhecer em sua trajetória é o fato de que ela – até agora – tem feito política para além do fisiologismo, do troca-troca, da barganha e do imediatismo. Está aí, brigando pelas questões que acredita e é a principal voz contra o novo Código Florestal e a licença de Belo Monte. Com consistência, com dados, com história.

Afinal, em sua gestão à frente do Ministério do Meio Ambiente (2003 a 2008) – de onde saiu pela força de pressões poderosas, internas e externas – o desmatamento anual na Amazônia caiu de 27 mil quilômetros quadrados para menos de 7 mil quilômetros quadrados. Em seu mandato foi apreendido 1 milhão de metros cúbicos de madeira ilegal. “O equivalente a uma fileira de caminhões carregados de toras unindo São Paulo ao Rio de Janeiro”, exemplifica. É importante ouvir Marina Silva porque ela se expressa com a clareza de quem sabe o que diz – porque vive o que diz.

Sabiamente Marina Silva tem conseguido manter o fato de ser evangélica na esfera do privado. No momento em que agir diferente, ela tem consciência de que perderá o apoio da parcela urbana, jovem e intelectualizada que se alinha ao seu lado e lhe garantiu parte significativa dos quase 20 milhões de votos na última eleição presidencial. Afinal, no pleito de 2010, não foi ela, mas sim José Serra e Dilma Rousseff que fizeram aquele papelão no segundo turno, submetendo-se aos interesses religiosos, em especial os da Igreja Católica.

É por isso que vale a pena ouvir o que Marina Silva tem a dizer. Porque ela está entre os poucos políticos em atuação que tem um discurso consistente, alicerçado na trajetória pessoal, sobre algo que vai mudar talvez não a nossa vida – mas a de nossos filhos, netos e bisnetos. Sem a participação da sociedade, que vai muito além do voto, a democracia não passa de uma ficção. Por isso é que já passou da hora de falar de meio ambiente com sua família na mesa do jantar. Porque botar a questão ambiental na mesa, no dia-a-dia, não é uma escolha, é um dever. Significa debater e decidir o que queremos ser e qual legado queremos deixar. Eu e você. Nós.

ELIANE BRUM

Jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É autora de Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo).

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